Pequena antologia de contos carnavalescos
Guia para não
foliões que abrem mão da farra, mas não da fantasia
No Carnaval, adquiri o hábito de trocar o corpo a
corpo suado das ruas por uns dias de paz e descanso, quase sempre na companhia
de livros e filmes. Não estou sozinho.
Às vezes, revisitando histórias, penso no muito que
a nossa literatura já fez dessa festa tão
brasileira. Se pouco se fala disso, acredito, é porque faltam os vistosos
grandes romances de Carnaval.
Pois é: loucura efêmera, descontínua, os ritmos
febris e o tempo fora do tempo dessa festa popular são mais bem captados pelo
conto. Que, como se sabe, carrega a injusta sina de ser menos visível.
Só isso explica que "O Bebê de Tarlatana
Rosa", obra-prima de terror de João do Rio, não seja exaltado por influencers
como um monumento literário:
"Eu estava trepidante, com uma ânsia de
acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por
demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche
ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente
sofre do mesmo mal no Carnaval".
Se houvesse justiça no mundo, a crônica-reportagem
"Batalha no Largo do Machado", de Rubem Braga, seria estudada em
cursos de pós-graduação como exemplo de prosa-batucada:
"A cuíca ronca, ronca, estomacal, horrível, é
um ronco que é um soluço, e eu também soluço e canto, e vós também fortemente
cantais bem desentoados com este mundo. A cuíca ronca no fundo da massa escura,
dos agarramentos suados, do batuque pesadão, do bodum".
Aqui e ali nossos clássicos dão sinais de
envelhecimento —rugas sob a máscara, mofo no confete. Certas palavras de Braga,
como também de Aníbal Machado em "A Morte da Porta-estandarte", já
não se usariam hoje.
O racismo brasileiro era mais difuso e inconsciente
no século passado. Machismo e misoginia também. Metade dos contos carnavalescos
é protagonizada por homens a quem o delírio coletivo interessa na medida em que
facilita a tarefa de fazer sexo com mulheres normalmente interditadas.
"Era o último dia de carnaval e todo carnaval
eu sempre fora com uma mulher diferente para a cama. Já na terça-feira, mais um
pouco o carnaval acabava e eu não teria mantido a tradição", diz o
narrador de "Teoria do Consumo Conspícuo", de Rubem Fonseca.
Spoiler: não dá certo dessa vez. Em compensação, o
Adamastor de "O Homem-mulher", de Sérgio Sant’Anna, vive momentos de
grande felicidade no cemitério, depois de se desgarrar do bloco com Dalva –que,
virgem até então, tem só 16 anos, nove a menos que ele.
Acontece —em dias como os que vêm por aí, acontece
demais. Como acontece também o imenso zero a zero existencial, quase
metafísico, de "Bandeira Branca", de Luis Fernando Verissimo.
Ainda bem que mulheres também escrevem sobre
Carnaval e cada vez mais o farão, diversificando a cozinha rítmica da festa.
"Um menino de uns 12 anos, o que para mim
significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa
mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos
já lisos de confete", conta Clarice Lispector em "Restos do
Carnaval".
O desejo está sempre lá, é claro. Mas as máscaras
são infinitas.
SÉRGIO
RODRIGUES
- escritor e jornalista, autor de “A Vida
Futura” e “Viva a Língua Brasileira”