Tragédia e esperança nas escolas de elite
Nada tem sido mais
revolucionário do que o sistema de cotas neste país
As
escolas brasileiras de elite têm funcionado como clubes, nos quais a finalidade
pedagógica dá lugar ao desejo de que os filhos façam seu
"networking".
Esse projeto acontece subliminarmente, desde o
maternal, imiscuído nas relações afetivas da criança que, ao final, só quer
brincar com o amiguinho com quem encontra diariamente.
Extremamente
fechadas, essas instituições mantêm a esperança de garantir aos filhos um lugar
no círculo olímpico do qual os pais já fazem parte ou no qual desejam entrar.
Aprender o conteúdo pedagógico, namorar e casar com pessoas da mesma classe
social e raça, tornar-se sócio, cliente e fornecedor, não necessariamente nessa
ordem, são as metas a serem alcançadas ao escolher uma escola particular cara.
Sob a ideia de "criar líderes", almeja-se formar patrões, não
cidadãos.
Para
uma família em ascensão, ou para quem deseja manter sua condição de privilégio,
essa promessa exige um aporte financeiro considerável, algo que a lógica
neoliberal justifica como "retorno de investimento".
A entrada de
crianças não brancas, pobres e periféricas por meio de cotas e programas
sociais desafia a lógica de condomínio, expressão cunhada por Christian Dunker
para desmascarar o mecanismo do apartheid brasileiro.
Embora
a inclusão seja um processo, a permanência é outro.
Ao introduzir crianças e
adolescentes nessas instituições sem o devido acompanhamento, estamos
potencializando violências que fazem parte de suas vidas e que os colégios
jamais poderiam ignorar.
A entrada nesses ambientes, vista como um privilégio
do qual se espera gratidão, costuma ser a reedição das humilhações diárias
dessa população.
A vertigem de confrontar o abismo social que nos divide entre
cidadãos de primeira e de segunda classe, transformando direitos em
privilégios, pode ser fatal, como temos visto.
O
tom caridoso e piegas daqueles que recebem esses alunos oculta um fato: a
criança pobre, preta ou periférica vai contra o DNA dessas empresas.
Elas se
mantêm justamente para afastar essas características das famílias abastadas. E
se essas crianças se tornarem amigas, e se convidarem para o aniversário ou
para ir à casa, e se namorarem, e se, horror dos horrores, quiserem casar? A
lista de apreensões mal disfarçadas é infindável.
O
projeto de permanência, sem o qual a inclusão é só mais uma violência,
acompanha de perto a experiência de quem enfrenta mazelas sociais com um
diminuto corpo infantil ou com o corpo adolescente, fadado a excessos.
Mas
o projeto não pode se reduzir à criança, pois ela não é o problema, mas a
solução. Do porteiro à direção, as políticas de inclusão devem promover uma
autorreflexão sobre as questões sociorraciais que fundam essas escolas, sob
pena de vivermos tragédias anunciadas, como o recente suicídio do aluno do
colégio Bandeirantes.
Essas
empresas sempre tiveram pessoas negras e periféricas em seus quadros, mas em
funções subalternas, reforçando estereótipos nos quais a ideia de privilégio se
organiza.
Mesmo para eles, a chegada de alunos e professores tão próximos de si
pode causar estranhamentos.
Os
professores aceitos nessas instituições costumam ter uma formação robusta que
não escapa ao letramento racial, de gênero e social, mas isso não significa que
tenham espaços para elaborar seus próprios fantasmas sobre o tema.
A direção,
por sua vez, se vê entre a cruz e a caldeirinha, almejando a impossível tarefa
de fazer esse omelete sem quebrar ovos. No entanto, sem transformações
radicais, não existe inclusão.
VERA IACONELLI -
diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no
Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela
USP