Nunca é tarde para brincar


Nunca é tarde para brincar

Mesmo nas circunstâncias mais adversas, rir é um ato de resistência.

Desde que comecei minha pesquisa com homens e mulheres de mais de 90 anos, em março de 2015, repito o mesmo mantra: "Nunca deixamos de ser a criança que um dia nós fomos". 

Com os meus melhores amigos, Guedes e Thais, de 98 anos, descobri que "brincar" é fundamental para manter a saúde física e emocional em meio ao caos social.

Logo no início da pandemia de Covid, em 15 de março de 2020, reli pela enésima vez o livro "Em Busca de Sentido", de Viktor Frankl. 

Para o psiquiatra austríaco, o humor pode ser uma arma da alma na luta pela autopreservação, um recurso poderoso para a sobrevivência física e mental.

Prisioneiro dos nazistas de 1942 a 1945, ele propôs a um amigo do campo de concentração um compromisso mútuo de inventar uma piada por dia com alguma situação engraçada que poderia acontecer após o fim da guerra, imaginando um futuro em que seriam libertados e voltariam para casa.

Quando iniciei meu pós-doutorado em psicologia social sobre envelhecimento, autonomia e felicidade, em outubro de 2021, reli a obra de Donald Winnicott para pensar sobre o "brincar" como uma "atividade terapêutica".

"Brincar", para o psicanalista britânico, é uma atividade criativa que, além de possibilitar o desenvolvimento de habilidades sociais, emocionais e cognitivas, tem a função de permitir que a criança expresse seus medos, emoções e conflitos de maneira espontânea, o que é essencial para seu desenvolvimento emocional.

No entanto, para Winnicott, "brincar" também é crucial para a vida adulta, pois é por meio da brincadeira que as pessoas podem verdadeiramente desfrutar de sua personalidade e encontrar um espaço seguro para expressar suas emoções mais profundas, sem julgamentos ou restrições. 

Quando se reconectam com sua criança interior, os adultos podem usar todo o seu potencial criativo e, assim, encontrar saídas para enfrentar traumas, obstáculos e adversidades cotidianas.

"É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem na sua liberdade de criação (...) 

É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)".

No livro "Play", o psiquiatra norte-americano Stuart Brown definiu "brincar" como uma "habilidade" que todos temos, mas que perdemos ao longo da vida. 

"Brincar" é mais do que uma diversão ou uma distração, é a verdadeira expressão de nossa individualidade e da nossa criatividade, da qual não devemos desistir na vida adulta.

"Se você considerar também os adultos que não brincam, verá que há prejuízos à sua habilidade de ter otimismo, de se adaptar às situações de estresse e a muitas outras áreas da vida que são comprometidas. 

Existe uma diminuição da imaginação, uma inabilidade de controlar o estresse, de funcionar em equipe e de se relacionar. A falta do brincar pode aumentar a agressão e o estresse interpessoal –as pessoas se tornam mais propensas a entrar em uma briga, por exemplo. 

Por isso, a ciência do brincar é uma disciplina urgente na sociedade contemporânea. O brincar pode ensinar a manter o otimismo, a se engajar apaixonadamente com seus planos de vida. Todo mundo que passou por alguma tragédia precisa brincar de alguma forma para se recuperar".

Estou escrevendo meu relatório de pesquisa de pós-doutorado buscando analisar a importância do "brincar" como uma atitude corajosa para enfrentar situações adversas, obstáculos e desafios em todas as fases das nossas vidas. 

Foi assim que me lembrei da mensagem de amor e de esperança que o ator Paulo Gustavo deixou em um programa de televisão no dia 22 de dezembro de 2020. Ele morreu quatro meses depois, aos 42 anos, vítima da Covid.

"Tanta coisa que eu queria dizer antes de ir embora, eu vou tentar, tá? Primeiro vamos combinar que este ano serviu para mostrar que a gente não vive sem a graça, sem o humor. O humor salva, transforma, alivia, cura, traz esperança para a vida da gente. Eu fico muito feliz e orgulhoso de ser artista, e mais ainda da comédia ser tão forte em mim. Eu faço palhaçada, você ri, eu fico com o coração preenchido. Me sinto realizado de conseguir te fazer feliz.
Rir é um ato de resistência!"

MIRIAM GOLDENBERG - antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"

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