Colapso dos serviços digitais é um alerta
Caos evidencia
fragilidade do ecossistema digital
Cheguei ao aeroporto de Roma na mesma hora em
que o mundo parou. A ideia era fazer uma conexão
rápida para outra cidade na Itália.
Em vez disso, caos. Nos painéis, a
indicação de que todos os voos haviam sido cancelados. Atendentes desesperados
e passageiros mais ainda, sem saber o que fazer.
As bagagens todas extraviadas.
As pessoas brigando entre si e com os funcionários das empresas.
As hipóteses para uma situação como essa são
poucas.
O tempo estava bom em praticamente todo o continente. Poderia ser um
vulcão que entrou em atividade de grandes proporções. Ou ainda, um ataque
terrorista.
Foi então que saiu a primeira notícia explicando
que se tratava de uma falha da empresa de cibersegurança CrowdStrike.
Muita gente nunca tinha ouvido esse nome.
Mesmo assim, a silenciosa CrowdStrike é uma das 15 empresas que dominam o
mercado de segurança na internet.
Suas ações são negociadas em Bolsa e compõem o
prestigioso índice da Standard & Poors. Seus clientes são na maioria
empresas de grande porte que prestam serviços críticos: saúde, transporte,
finanças etc. São empresas que não podem falhar.
Todas pagam muito dinheiro para a CrowdStrike em
troca de proteção contra ataques que possam afetar seus serviços.
Só que o
descuido veio justamente de quem deveria cuidar. Quando isso ocorreu, não havia
plano B.
Cada empresa estava sozinha para reparar o dano.
E o caos se instalou.
É
chocante um erro desse tipo por parte de uma empresa que tem uma
responsabilidade do tamanho da CrowdStrike.
Ao atualizar seu software, mandou um pacote de
atualização defeituoso para os seus clientes. Fez isso de uma vez só.
O
resultado foi que a atualização bloqueou serviços do sistema operacional
Windows, que passou então a não funcionar. Como praticamente tudo roda em cima
do Windows, nada mais funcionou também.
Empresas de cibersegurança como a CrowdStrike
precisam de poderes praticamente absolutos sobre os computadores dos clientes
para funcionar.
Elas podem tudo: bloquear aplicações, instalar novos programas
e têm prioridade sobre o comando das máquinas em que atuam. Mais que as próprias
empresas.
É como entregar a chave da casa para um vigilante.
Só que para proteger a família, ele passa a controlar tudo, o que entra e o que
sai, a lista de compras, os horários e relacionamentos de cada pessoa. É um
ditador onipotente e onisciente. Foi essa figura insólita que falhou.
Tudo
isso revela uma questão preocupante. A internet que utilizamos todos os dias é
uma rede fundada em cima do risco.
Ela não foi construída tendo segurança como
uma de suas premissas. Ao contrário, ela é um emaranhado de redes distintas,
cada uma com seus problemas ou vantagens.
A
ideia é que esse novelo poderia funcionar de forma aceitável por ser uma rede
diversa. Se um caminho fosse derrubado, seria fácil encontrar outro.
Se um
serviço parasse, vários outros estariam disponíveis. É a robustez que surge a
partir da diversidade.
Só
que nos últimos anos tem havido uma concentração cada vez maior na internet.
Serviços que eram para ser "só mais um" dentre vários outros estão se
tornando grandes demais e ocupando posições dominantes, matando a concorrência.
Quando
esses serviços falham, eles levam embora tudo que é construído em cima deles,
sem que haja outros caminhos imediatos para substituí-los. É como na natureza.
Um ecossistema é resistente na medida em que for diverso, com muitas espécies.
Uma
lavoura onde predomina apenas um tipo de cultura é uma presa fácil para pragas
e precisa investir o tempo todo em proteção para não colapsar. O caos da última
sexta nos permite enxergar exatamente o lugar em que estamos.
RONALDO LEMOS - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do
Rio de Janeiro.