No alcoolismo ativo, me
espatifei na casa da minha mãe e guardei mais uma cicatriz
É muito injusto, no mínimo, o fardo que os familiares dos alcóolatras
carregam; eles fatalmente adoecem, também.
"Agora você sempre vai
saber quando o tempo for esfriar." Foi isso que o médico me disse ao me
ver calçando uma daquelas botas de recuperação.
Eu tinha quebrado um ossinho do
pé. Havia me espatifado no chão na casa da minha mãe —ou teria sido em outro
lugar? Fato é que o osso nunca mais foi o mesmo, e é tão sensível que dói antes
mesmo de mudar o tempo.
Essa é apenas uma das cicatrizes do meu alcoolismo ativo. Desse dia pouco
lembro, tenho apenas alguns flashes.
Fazia uma semana mais ou menos
que eu havia desaparecido da minha casa —o que significa que ninguém da minha
família, tampouco nenhum amigo mais próximo sabia do meu paradeiro– quando
resolvi voltar para a casa da minha mãe. (Já fazia mais de cinco anos que eu
morava sozinha, mas era junto à minha mãe que buscava ajuda.)
Cheguei, caí na
entrada do prédio (eu acho), peguei o elevador e subi até o quarto andar.
Muito
estranho pensar que o cérebro, mesmo muito louco, me levava certinho aonde eu
queria chegar. Estava tão exausta que praticamente desmaiei no sofá da sala.
Pouco ou muito tempo depois, não
sei dizer, minha mãe e minha irmã me acordavam com aquela cara de raiva e amor.
Uma expressão que não me sai da cabeça.
Gritos e muitas perguntas. Minha cabeça
explodindo, ainda sob efeito da bebida. Aí começou uma discussão com
xingamentos e acusações que em sã consciência nem eu nem elas jamais teríamos.
O interfone tocou. Sim, era o porteiro perguntando se alguém precisava de
ajuda. "Você não percebe esse caos todo que instala na família?"
indagava minha irmã com a voz embargada no choro de ódio, raiva e desconforto.
Eu não ligava, seguia entorpecida, só pensava em ir até a geladeira pegar
alguma coisa para me ajudar a enfrentar aquela situação.
O álcool me dominava de forma tão intensa que
eu não me importava com quem mais me amava nem com nada que estava acontecendo.
Eu infernizava a vida delas, as duas pessoas que mais sofreram com meu
alcoolismo: mãe e irmã. Foram elas que me socorreram todas as vezes que
puderam.
Foi minha irmã que num ato de amor extremo decidiu (com muita culpa)
me internar numa clínica de recuperação quando ninguém mais aguentava aquele
rojão. Nunca esqueço dos dias naquele lugar.
Enquanto eu me via (e de fato
estava) trancafiada com muitos outros doentes mentais (clínicas são sempre um
grande desafio e rendem muitos textos), elas estavam tentando acreditar que
haviam feito o melhor.
É muito injusto, no mínimo, esse
fardo que os familiares dos alcóolatras carregam, eles fatalmente adoecem
também. Jamais saiu da minha cabeça a imagem da minha irmã com a cara
completamente inchada de tanto chorar nesse período da minha internação.
Via em
seu rosto uma dor que, por mais que eu quisesse eliminar, eu não conseguia. A
doença ainda atuava com muita força.
Enquanto tudo na minha vida não virou pó,
segui fiel à bebida, sem traí-la em nome do amor de ninguém.
Nem do meu avô.
figura que, desconhecendo minha condição, muitas vezes me ajudou, sem saber, a
escapar da vigilância dos demais para roubar bebidas.
Foram mais cinco internações
além dessa. Hoje, com alguns anos de AA, percebo que todos que são afetados
pela doença viveram ou ainda vivem a mesma história.
Desfizeram vínculos com marido, mulher, filhos, irmãos, parceiros,
amigos, empregadores. O principal sentimento que eu levava comigo no
primeiro dia em que pisei numa sala de AA era uma culpa imensa por tudo que
infligi às pessoas que amava.
O grupo me deu força, dizia que
ia passar, que bastava eu voltar sempre lá e encontrar todo mundo. Eu me
agarrei naqueles sorrisos e a dor foi passando. Está passando.
ALICE S. – escreve jornal
FSP