Era uma vez um país do futuro
Tudo
passa, diz o poeta, mas há um longo e infausto caminho a percorrer.
Era uma vez um Ulysses Guimarães, chegou a vez de um Davi Alcolumbre, de um Arthur Lira.
Era uma vez um estadista, Oswaldo Aranha, chegou a vez do
terraplanista Ernesto Araújo.
Era uma vez um empreendedor, Antônio Ermírio de Moraes, chegou a vez dos mascates Luciano Hang e Carlos Wizard.
Era uma vez um general de quatro estrelas, Ernesto Geisel, chegou a vez de um capitão Bolsonaro —imaginem só, um Bolsonaro.
Era uma vez um criador de estrelas, Antonio Candido, chegou a vez de um parteiro de
energúmenos, Olavo de Carvalho.
Era uma vez uma protetora dos matos e dos
passarinhos, Marina Silva, chegou a vez de um exterminador
de borboletas, Ricardo Salles.
Era uma vez um empreendedor, Roberto Simonsen, chegou a vez de um
politiqueiro, Paulo Skaf.
Era uma vez um programa de educação que criou 17
universidades com 31 campi, um programa de ensino profissional, outro de acesso
financiado ao ensino superior e, enfim, um quarto de ensino fundamental, mas
chegou a vez de armar o brasileiro, seis armas para cada cidadão, uma garrucha
de cada lado da cintura, uma espingarda em cada ombro e uma metralhadora nas
mãos —além, obviamente, de facões, sabres, espadas e um osso no nariz de cada
um.
Quanto mais covarde o cidadão, lembrem-se, de mais armas ele precisa.
Era uma vez um Plínio Sampaio, chegou a vez de
um Flávio Bolsonaro.
Era uma vez um dom Paulo Evaristo Arns e seu rebanho de justiceiros, chegou
a vez de um bispo, Edir Macedo, e seus US$ 2 bilhões.
Era uma vez
um Florestan Fernandes, chegou a vez de um Carlos Bolsonaro.
Era uma vez um defensor dos injustiçados, o
advogado Sobral Pinto, que recusou uma cadeira no
Supremo Tribunal Federal para que não pensassem que assumiria por ter
defendido Juscelino Kubitschek, então presidente.
Chegou
a vez de um fascistoide ávido de palanque e de poder, Sergio Moro, que desavergonhadamente engoliu
todos os ultrajes para chegar à Suprema Corte.
Era uma vez um Teotônio Vilela, chegou a vez de um Eduardo Bolsonaro, montando um porco.
Era uma vez um dos mais avançados sistemas de saúde
do mundo, o SUS.
Chegou a vez do “mimimi”, de uma “gripezinha” que já matou mais de 360 mil
brasileiros e até outro dia estava sob a batuta de um coveiro, o general Eduardo Pazuello.
Era uma vez o movimento Diretas já. Chegou a vez
das “rachadinhas”, das milícias, da mentira
venal, do gabinete do ódio, das fake news palacianas, do elogio a torturadores.
Era uma vez um economista, Celso Furtado, chegou a vez de um
especulador, Paulo Guedes.
Era uma vez uma guerreira, Maria da Conceição Tavares, chegou a vez de
uma sirigaita que, do galho de uma goiabeira, distribui bênçãos
gratuitas: Damares Alves.
Era uma vez um educador, Anísio Teixeira, chegou a vez de um psicopata, Abraham Weintraub.
Era uma vez um gentil, Betinho, que iluminou o Brasil inteiro com seu
sofrimento. Chegou a vez de Fabrício Queiroz, que regou os bolsos da
família Bolsonaro.
Era uma vez um país do futuro, chegou a vez da
barbárie. Mas tudo passa, diz o poeta.
Sim, tudo passa, mas deixa um longo e
infausto caminho a percorrer, um longo caminho para recuperar a dignidade, a
decência, a civilização.
Rogério Cezar de
Cerqueira Leite - físico, professor emérito da
Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente de honra do Centro
Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)