Mesmo
há anos sem tocar flauta, retorno não foi difícil, talvez graças ao violão.
Fazia mais de uma década que eu não tirava a flauta do estojo
para mais do que uma passada rápida, pró-forma. Mas dois amigos novos, um
músico profissional no circuito de Nashville, o outro cineasta bem versado em
música clássica, me inspiraram a voltar a tocar o que, afinal, era o meu melhor
instrumento.
Minha flauta de estudante, presente do meu pai quando eu tinha
uns 12 anos, ainda dava para o gasto, mas resolvi que era, finalmente, hora de
fazer upgrade. Nashville, Cidade da Música (auto-proclamada), não me
decepcionou: em uma hora eu estava de volta em casa com uma nova flauta,
prateada, usada, mas em perfeitas condições —e com teclas tão mais sensíveis e
suaves do que eu estava acostumada.
Tirei os livros da caixa empoeirada na garagem, ainda da mudança
de quatro anos atrás, e passei o domingo inteiro revisitando meus clássicos.
Para meu espanto, meus dedos sabiam achar seus lugares sozinhos
em cada música, com quase nenhum esforço.
A forma da boca, que eu tanto penei para controlar na
adolescência, com a combinação certa destes músculos contraídos e aqueles
relaxados, e se ajustando para cima, para baixo e para a frente para atingir as
notas mais agudas ou graves, vinha naturalmente. Sincronizar perfeitamente
dedos e golpes de língua para o ataque das notas sair limpo? Sem problemas.
Resultado: eu nunca toquei flauta
tão bem como depois de anos parada. Até meu filho saiu da toca para conferir.
Que
diabos havia acontecido com meu cérebro em uma década sem prática, contra todos
os preceitos da neurociência de que só se melhora com o uso?
Duas
coisas. A primeira: foram tantos os anos de prática, modificando os circuitos
dos núcleos da base que desafogam o córtex cerebral e tornam nossas ações
automáticas, sem precisar de supervisão atenta, que mesmo após uma década sem
uso, os circuitos e portanto os programas motores continuavam lá. Por isso não
desaprendemos a andar de bicicleta, dirigir, assobiar, ou escrever à mão apesar
do desuso.
E
a segunda, não menos importante: passei os últimos três anos tendo aulas de
violão clássico com um professor que me ensinou a importância de manter o toque
leve, sincronizar perfeitamente as duas mãos, ajustar a posição dos dedos,
acentuar a melodia, prestar atenção na pontuação, praticar os trechos difíceis
em pedaços menores. Flauta certamente não é violão, mas os novos hábitos ao
redor da música são generalizáveis. Toda forma de aprendizado se transfere e se
aproveita.
Boa
lição para tempos de quarentena...
Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt
(EUA).
Fonte: coluna jornal FSP