Aumento da pobreza e da fome produz alto número de
moradores de rua
Não
é possível ficar de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera inútil de
governantes incompetentes.
Aos domingos pela manhã, costumo correr pelas ruas centrais de São Paulo.
Com a cidade vazia àquela hora, o trajeto é sempre o mesmo: sigo pela Maria
Antônia, Consolação, praça da República, Barão de Itapetininga, Viaduto do Chá,
rua Direita e praça da Sé.
Quem vê a praça da Sé de hoje, marco zero da cidade, não
acredita que por ali circulavam homens de terno e gravata e mulheres com
vestido e bolsa.
Às 7h da manhã, a praça é um formigueiro de homens e até mulheres e crianças.
Alguns dispõem do conforto de barracas do tipo iglu que garantem a eles um
mínimo de proteção e privacidade, outros não têm alternativa senão acomodar-se
em colchões de espuma esburacados e encardidos que alguém jogou fora ou em
pedaços de papelão que um dia foram caixas.
Enquanto começa a movimentação dos
madrugadores, os notívagos dormem a sono solto empacotados em cobertores
ordinários.
Como o hábito de passar por ali no mesmo horário é
antigo, acompanho há anos o crescimento do número de moradores da praça.
Posso lhes garantir, sem medo de exagerar, que pelo menos quadruplicou nos
últimos dois ou três anos.
Anos atrás, só havia homens, boa parte dos quais dependentes
de álcool, crack ou com transtornos psiquiátricos; agora, são famílias
inteiras.
Há uma semana, o jornalista Fernando Canzian
comentou, nesta Folha, uma pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssar.
Tomo
a liberdade de ressaltar os seguintes dados citados no texto: “Quase 20 milhões
de brasileiros, um Chile, declaram passar 24 horas ou mais sem ter o que comer,
em alguns dias.
Mais 24,5 milhões não têm certeza de como se alimentarão no dia
a dia, e já reduziram a quantidade e a qualidade do que comem.
Outros 74
milhões vivem com medo de passar por essa situação”.
Não é preciso pós-graduação em matemática para
concluir que 112 milhões, pouco mais da metade dos brasileiros, vive em estado de insegurança alimentar —leve,
moderada ou grave.
Nesse contingente, de 2014 para cá, o rendimento real per
capita proveniente do trabalho caiu cerca de 30%.
No século passado, quando as secas assolavam o Nordeste, o povo do interior
resistia à fome até bater o desespero, juntar a família e meia dúzia de
pertences e sair pelas estradas poeirentas para buscar auxilio no povoado mais
próximo.
Os velhos e as crianças eram os que mais penavam, muitos ficavam pelo
caminho ao lado de uma cruz de madeira.
Os bem aventurados que conseguiam chegar a São Paulo construíam barracos
com teto de zinco, na periferia inchada e despreparada para recebê-los.
No internato e na residência médica no Hospital das
Clínicas, meus colegas e eu recebíamos crianças desidratadas que vinham com
diarreia e vômitos, resultantes da miséria, da falta de higiene e
de saneamento básico.
Nos plantões do pronto socorro de pediatria fazia
parte da rotina perdermos dois ou três pacientes, num turno de 12 horas.
Na
enfermaria, tínhamos uma ala para desnutridos, crianças magrinhas, com
as costelas à mostra, que eram internadas para tomar café da manhã, almoçar e
jantar todos os dias.
Em contraste com elas, os desnutridos farináceos,
alimentados à base de farinha, gordinhos, com os cabelos ralos e descorados
como os das espigas de milho.
Essa realidade parecia ter ficado 50 anos atrás,
nenhum de nós imaginava revivê-la. Ninguém esperava ver a fome assolar as
cidades mais ricas do país, em pleno século 21.
Aceitamos a desigualdade social entre nós com a mesma
naturalidade com que nossos antepassados conviviam com a escravidão.
Eles,
também, achavam que o mundo era cruel e que a economia não teria como
sobreviver sem a mão de obra escrava.
Envergonhada de “tanto horror perante os
céus”, um dia a sociedade decretou o fim da escravidão e liberou os negros para irem atrás da sobrevivência por
conta própria.
Acabar com a desigualdade brasileira por decreto
não será possível, mas com a fome, sim.
Um país que deixa 20 milhões de
cidadãos passarem um dia inteiro sem ter o que comer não pode ser considerado
civilizado.
Não é possível ver uma sociedade no estágio de
desenvolvimento que atingimos de braços cruzados diante dessa infâmia, à espera
inútil de que governantes incompetentes como os nossos
encontrem
solução para uma tragédia dessas dimensões.
DRAUZIO VARELLA - médico cancerologista, autor de “Estação
Carandiru”.