As coisas boas do autismo


As coisas boas do autismo

Há coisas lindas no modo como nós, canhotos mentais, vivenciamos o mundo.

O mês de conscientização sobre o autismo acaba neste dia 30, então aproveito a oportunidade para encerrar o período falando do que poucos sabem: que há coisas lindas na maneira como nós, canhotos mentais, vemos e vivenciamos o mundo.

Do alto dos meus cinquenta (e um) anos de experiência com o assunto, dos quais cinco como neurocientista sabidamente autista e se divertindo pensando nisso, cheguei a algumas conclusões —que, notem, especialmente para uma cientista, devem ser tomadas não como verdades absolutas, mas como hipóteses de trabalho até que sejam comprovadas.

Minha conclusão central é que o autismo e tudo o que vem com ele começa com representações cerebrais extremadas, tanto do mundo quanto dos próprios processos mentais: cada modalidade ou é muito, ou é muito pouco. 

Faz ainda mais sentido agora que entendi que o cérebro trabalha no limite da sua capacidade energética; então, se algum processo chupa mais recursos para si, é à custa de sobrar menos para os outros. 

Nesse cabo de guerra por energia, as modalidades que funcionam para mais fazem isso deixando sobrar menos para as outras.

O foco do que se fala sobre autismo está, compreensivelmente, nessas deficiências, mas hoje quero falar do lado bom.

O botão de intensidade permanentemente pra lá do máximo em alguns canais torna as pequenas coisas do mundo ou sensacionalmente cativantes ou absolutamente desprezíveis, mas nunca apenas medíocres. 

Sim, o preço é o risco sempre presente de overload, que dispara ansiedade paralisante, que para mim explica o lado disfuncional do autismo, incluindo o mutismo seletivo. 

O autismo que não dispensa supervisão por um destro mental é para mim apenas uma versão de processamento ainda mais extremado.

Mas voltando às coisas boas. Minha percepção do mundo vai de maravilha em maravilha, ora do lado de fora, ora, e no meu caso com frequência, do lado de dentro. 

A palavra em inglês, "wonder", é perfeita: eu vivo entre o wonder externo e o wonder interno, explorando meus próprios pensamentos.

As folhas que despontam nas árvores na primavera aqui no hemisfério Norte não são decoração, mas brotos de vida auto-organizada, cujo dejeto, o oxigênio, torna tantas outras vidas possíveis.

O som dos passos, os meus e os dos outros, é música esperando ser feita, basta sincronizar ou sincopar.

Palavras comuns me fazem rir por dentro, brincando com sons e significados que os outros deixam passar.

A água correndo entre os dedos é presente de deuses em que eu não acredito.

Um abraço, um carinho, um toque são o que há de mais sublime no mundo.

Sim, o overload está sempre à espreita, e uma etiqueta na roupa pode ser suficiente para tornar o dia inteiro insuportável, porque o desconforto vem com o custo de não registrar sua fonte. Mas até lá eu passo meus dias de wonder em wonder.

Nossos amigos podem contar conosco, exatamente como nós achamos que podemos contar com eles, pois sua palavra é lei.

Na verdade, toda palavra é lei para nosso cérebro literal –mas a maioria das pessoas não fala o que pensa, ou não pensa o que fala, então não podem ser nossas amigas; as que ficam são as que falam a nossa língua, e a essas nós nos agarramos. De verdade.

Tem bem mais, só que meu espaço acabou. Mas pergunte a um autista consciente do seu autismo, e eu garanto que, se a pergunta foi honesta, você vai se deliciar com a resposta.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

 

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