Técnica permite "editar"
o código genético de organismos vivos
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O
economista Fritz Machlup afirmava que o sistema de patentes representava a
vitória dos advogados sobre os economistas. Parece que os advogados acabam de
triunfar também sobre os cientistas. Uma das tecnologias mais importantes deste
século está sob intensa batalha judicial por causa de uma guerra em torno de
sua patente.
Trata-se
da técnica chamada CRISPR. Para quem ainda não conhece, é o método que permite
"editar" o código genético de organismos vivos. Isso permite, grosso
modo, recortar e colar uma nova instrução genética com precisão e
flexibilidade. Uma espécie de "copy and paste".
O
potencial da técnica é enorme. Há quem diga que abrirá caminho para curar
vários tipos de câncer, eliminar a necessidade de pesticidas, salvar espécies
em extinção e até acabar com a fome. É uma tecnologia que pode mudar nossos
modos de vida. Até porque é relativamente barata e simples de usar.
Neste
ano, a técnica foi usada pela primeira vez em um ser humano, na China. A
decisão foi controversa, e o caso está sendo acompanhando por cientistas de
todo o mundo.
O
CRISPR já deveria ter motivado um Nobel e incentivado bilhões em investimento.
Isso só não ocorreu porque a paternidade da técnica (e, por consequência, sua
patente) é objeto de intensa disputa judicial. Uma com toques hollywoodianos,
com acusações de sexismo, muito dinheiro envolvido e alta carga dramática.
De
um lado, o grupo conduzido pelo biólogo Feng Zhang, ligado ao MIT e a Harvard.
De outro, o time da bióloga Jennifer Doudna, de Berkeley. Ambos chegaram a
resultados similares praticamente ao mesmo tempo. O time de Berkeley foi o
primeiro a pedir a patente. Mas o pedido do grupo do MIT e Harvard andou mais
rápido, e a patente saiu antes.
O
resultado é a amarga batalha que se desenrola neste momento. Os vencedores
ainda não são claros, mas os perdedores são muitos. Muitas empresas licenciaram
a tecnologia com cada uma das partes. Só que, com medo, os investimentos estão
paralisados. Além disso, há temores de que a parte vencedora da patente impeça
ou dificulte novas pesquisas com a técnica.
Em
razão disso, há cada vez mais demandas por um modelo de ciência mais aberto,
especialmente quando organismos vivos estão envolvidos. O biólogo Kevin Esvelt,
do MIT, por exemplo, afirmou que "nem Berkeley, nem Harvard, nem o MIT
deveriam ter patentes sobre o CRISPR. Isso seria um desserviço à ciência".
Ele
defende o compartilhamento das pesquisas científicas, permitindo, assim,
progresso mais rápido e maior segurança contra a possibilidade de acidentes
genéticos.
Quem
perde mesmo com a batalha são os milhões (bilhões) de pessoas que podem se
beneficiar da técnica CRISPR. Elas incluem de pacientes que sofrem com doenças
crônicas a habitantes de países que lutam contra a fome. Boa hora para
revisitar a frase de Machlup e repensar o sistema de patentes à luz do
progresso científico e do interesse público.
Ronaldo Lemos - advogado, diretor do
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em
direito por Harvard.
Fonte:
coluna jornal FSP