Uma fresta no muro
Pode haver um
caminho, apesar de seus problemas, que faça avançar a causa fundamental do
clima
O jornal chinês "Global
Times" informa que a China lançará produtos químicos em nuvens, para gerar
chuva e garantir a colheita de grãos no outono.
A prática
faz parte do arcabouço tecnológico conhecido como geoengenharia, recurso
extremo para enfrentar os efeitos do aquecimento global.
O fenômeno não é isolado.
Situações emergenciais em várias regiões do planeta, que vão da pior seca dos
últimos 500 anos na Europa a inundações que afetaram mais de 30 milhões de
pessoas no Afeganistão e Paquistão, tornam impossível ignorar a realidade da crise climática, provocada pela
ação humana através da emissão de gases de efeito estufa (GEE).
O maior número
e a gravidade dos eventos reforçam a sensação, confirmada pela ciência, de que
o tempo para uma reação se torna exíguo.
No entanto, observamos pasmos a
resistência de governos em todo o mundo —talvez com a honrosa exceção da União
Europeia— em aprovar e implementar medidas que possam controlar o agravamento
inexorável do problema.
Faltam especialmente leis e
programas governamentais concretos visando à redução progressiva das emissões
de GEE, até sua zeragem em meados deste século, considerada fundamental para a
contenção do aquecimento em 2 graus, sobre os níveis pré-industriais.
Essas medidas resultariam na
formação de um preço relevante para as emissões de carbono, que inúmeros
autores veem como o instrumento mais importante para a descarbonização da
economia, pois oneraria as emissões, por um lado e, por outro, estimularia o
desenvolvimento mais rápido das tecnologias alternativas ao uso de combustíveis
fósseis.
Esses mesmos autores, no
entanto, apontam grandes dificuldades políticas.
A razão fundamental para isto
reside na própria natureza do regime democrático que, ao submeter governantes e
legisladores a eleições periódicas, desestimula na prática a adoção de medidas
impopulares, cujos ônus imediatos só serão compensados por benefícios a
ocorrerem em uma, ou duas gerações.
No Brasil, por exemplo, até
mesmo uma medida simples, consentânea com nossos compromissos internacionais,
como o projeto promovendo a criação de um mercado de carbono no
país, enfrenta resistências no executivo e legislativo, tendo sido retirado de
pauta, após ser descaracterizado pela relatora (Carla Zambelli).
A superação desses limites políticos
parece depender do agravamento da crise climática.
Apenas quando os efeitos do
aquecimento se tornarem, mais que evidentes, imediatos, haverá motivação
política para a adoção das medidas necessárias.
Quando isto ocorrer, no
entanto, é possível que já seja tarde demais e é certo que o custo será muitas
vezes superior.
A sensação é de estarmos em uma
"sinuca de bico", condenados a assistir impotentes à contínua
degradação do ambiente.
Nestes momentos, frequentemente ansiamos por um Deus
ex-machina, um salvador, um déspota esclarecido, que assuma o risco de tomar as
medidas necessárias, por impopulares que possam ser.
Infelizmente, deuses não estão
disponíveis e os candidatos a déspota, que são muitos, não parecem nada
esclarecidos.
Uma notícia recente no Financial
Times provocou uma rachadura nesse cenário hermético e deixou entrar uma réstia
de luz.
Trata-se da condenação imposta por um tribunal, considerando ilegal o
plano do governo britânico para zerar as emissões de carbono. A razão foi a
insuficiência das informações sobre como o objetivo seria atingido.
O advogado de um dos grupos
proponentes da ação afirmou que a decisão é um marco na luta contra o atraso e
inação no combate ao aquecimento global, forçando o governo a implementar
planos que ataquem efetivamente o problema.
Como em outros temas difíceis, a
judicialização, apesar de seus problemas, pode ser o caminho para fazer avançar
mais uma causa fundamental.
Na maior parte dos países, os
juízes e promotores não são investidos por meio de eleições. Assim, podem ser
menos vinculados a opiniões da maioria e a interesses imediatos.
É por isso que
a Justiça parece se qualificar para a proteção dos direitos de quem ainda não
vota e será mais afetado pelo aquecimento global: os menores de idade e as futuras
gerações.
É certo que juízes não podem
fazer leis, nem se substituir aos governos.
Mas há, para os países, um número
crescente de deveres jurídicos assumidos em foros internacionais, assim como
derivados de normas constitucionais, como é o caso do Brasil, por exemplo.
Sua
efetivação pode ser monitorada e cobrada pela Justiça, forçando os governantes
a se empenharem efetivamente na defesa do meio ambiente.
Além disso, não são apenas
governos e instituições públicas que assumem compromissos.
Muitas empresas em
todo o mundo têm feito promessas e afirmações que com frequência não se
sustentam; elas se tornaram conhecidas como "greenwashing".
Essas empresas têm sido questionadas nos tribunais, havendo inclusive fundos
especializados em financiar os custos destes processos, em troca de uma
participação em seus resultados.
Litígio climático (climate
litigation), nome sob o qual a prática é conhecida, tornou-se um campo jurídico
de crescente importância, especialmente nos países desenvolvidos.
O número de
casos mais que dobrou nos últimos dois anos, uma vez que, a cada êxito obtido
nos tribunais, mais grupos sentem-se encorajados a impetrar ações.
Não é o ideal ter de recorrer à
Justiça. Mas como tornar efetivo aquilo que Estados e empresas prometem
vagamente, e depois não cumprem?
Deve-se reconhecer o engenho dos arquitetos da
democracia que, ao atribuírem poderes de controle jurídico ao judiciário,
criaram mecanismo que poderá ser decisivo para a preservação do planeta.
(Agradeço as importantes
contribuições de Carlos Ari Sundfeld para esse texto)
CÂNDIDO BRACHER - administrador de Empresas formado pela
FGV, foi executivo do setor financeiro por 40 anos.