Uma singela homenagem à fantasia
Aos “seres folclóricos” que povoam a arte e a vida.
Qualquer cidade, por menor que seja, tem, dentre os
seus inúmeros habitantes, aqueles que fogem inteiramente às convenções sociais,
manifestando amiúde comportamentos tidos por esdrúxulos ou exóticos.
Alguns são
engraçados, divertidos; outros são
taciturnos e provocam o medo, especialmente nas crianças.
São, como se pode
denominá-los, “seres folclóricos”, aptos a dar um colorido especial ao
cotidiano modorrento das pessoas “normais”.
O esdrúxulo, o exótico, o
diferente, o anormal, engendra na maioria das pessoas, sobretudo quando
estão reunidas, formando um agrupamento mais ou menos anônimo _ isto é, uma
multidão _ uma reação de desprezo e de escárnio, uma quase necessidade de rir e
de humilhar.
A loucura que julgamos ver estampada
no rosto e nos gestos dos “seres folclóricos” constituem um convite quase
irrecusável ao sarcasmo.
É praticamente impossível
tratá-los com o respeito e a consideração que normalmente dedicamos aos nossos
“iguais”, isto é, àqueles que agem em conformidade com os padrões vigentes.
A
eles, aos diferentes, resta somente a zombaria, o riso malicioso e, apenas em
circunstâncias tão particulares quanto raras, a piedade.
É forçoso constatar que, dentre
as condições especiais de surgimento e manifestação da piedade, há uma de
particular validade, a faixa etária.
Os mais jovens, especialmente as crianças,
dificilmente são capazes de demonstrá-la, ao menos em relação aos “seres
folclóricos”. São, via de regra, os mais encarniçados na batalha que julgam
travar contra os “estranhos”, os transviados.
Riem, gritam, xingam, atiram
objetos, não conseguem disfarçar a alegria em espezinhar e humilhar.
As razões de tamanha crueldade
são desconhecidas.
De qualquer maneira, para não cometermos uma injustiça para
com os nossos queridos enfant terribles é conveniente
reforçar que a piedade não é _ e provavelmente nunca foi _ a regra de conduta
entre os adultos, embora estes sejam capazes de praticá-la ou de fingi-la.
Lembro-me muito bem dos “seres
folclóricos” com os quais convivi. Na verdade, não posso afirmar que com eles
convivi. Ninguém convive com um “ser folclórico”.
Nós o vemos, atiramos a ele
um ou outro dichote, dedicamos um ou outro gesto sarcástico e seguimos adiante.
Não sabemos o seu nome completo, o seu local de moradia, a sua história de vida.
A verdade é que, a despeito dos reiterados encontros e céleres contatos, não o
conhecemos, e, mais importante do que isso, não queremos conhecê-lo: suas
dores, seus medos, suas angústias, suas esperanças e desesperanças, suas razões
e desrazões.
Em minha infância, três “seres
folclóricos” desfilavam pela modesta cidade onde nasci.
Havia um homem,
baixinho e gorducho, que andava pelas ruas com uma boneca ao colo, dizendo a
todos tratar-se de sua filhinha.
Nessa mesma época, circulava
pelas ruas centrais, sempre empurrando uma bicicleta (não me lembro de tê-lo
visto pedalando a bicicleta) um senhor famoso por sua aversão ao banho.
Além
desses, e para completar o quadro com um “ser folclórico” de outro tipo,
lembro-me de um homem que provocava um certo temor na meninada: andava rígido
como um robô, normalmente cheirando a urina e rangendo os dentes de tal sorte
que o barulho podia ser ouvido a vários metros de distância.
Eu,
particularmente, achava que podia ser ouvido a quilômetros e quilômetros.
Passado tanto tempo de meus
verdes anos, lembro-me desses personagens com invulgar nitidez, de seus rostos
e gestos, de seu caminhar trôpego, de suas marcas e cicatrizes.
Lembro-me de
inúmeras cenas em que estiveram, de um modo ou de outro, presentes, ocupando o
centro do palco, quando invariavelmente eram vítimas do desprezo alheio ou
apenas como elementos da paisagem, pano de fundo para o desenrolar da vida na
cidade.
Lembro-me, repito, com incrível clareza, como se estivesse
vendo-os neste exato momento. O curioso é que outros personagens, supostamente
mais próximos do meu coração, como parentes, amigos e outras cenas teoricamente
mais relevantes para meu desenvolvimento pessoal, não têm a mesma força, o
mesmo colorido.
São lembranças tênues, pálidas, vacilantes. Lutam tenazmente
para se manterem presas à minha retina, ao meu cérebro quase senil.
Por que
será? Como explicar esse estranho fenômeno?
Por que os “seres folclóricos” nos
marcam com tamanha intensidade, como se fossem ferro em brasa e tivessem
sido cravados dolorosamente sob nossa pele?
Depois de muito refletir sobre
tais questões e outras congêneres, cheguei a conclusão de que o verdadeiro
problema não reside nos “seres folclóricos”, mas em nós mesmos.
Por um lado,
temos medo, não de cada um em particular, mas da ameaça que em conjunto
representam: despir o véu que a duras penas mantemos sobre o rosto.
Os “seres folclóricos” são uma
afronta à razão, às normas, às leis, à nossa dignidade pequeno-burguesa.
Por outro lado, e talvez por
isso mesmo, eles nos fascinam, capazes que são de acordar a nossa imaginação e
provocar o (res)surgimento de fantasias há muito guardadas no baú
semi-inviolável do “bom senso” e da respeitabilidade.
Por mais difícil que seja
admiti-lo, somos, os respeitáveis pais de família, uns relambórios cuja vida
não é capaz de despertar a mínima curiosidade ou o genuíno interesse de nossos
pares, invariavelmente tão sem graça quanto nós.
São os desejos mais
recônditos, as fantasias mais ingênuas, as brincadeiras mais pueris que dão
sabor à vida, jamais a razão que, abandonada ao seu talante, só pode conduzir à
tristeza, ao pessimismo e à melancolia.
Portanto,
os “seres folclóricos”, longe de merecerem o escárnio, deveriam receber loas
por sua coragem – ainda que inconsciente – e pela capacidade vital de nos
proporcionar um aprazível atalho em meio ao tedioso caminho que constitui nossa
vida, tão mesquinha quanto insulsa.
Quem são os loucos: eles ou
aqueles incapazes de perceber o seu valor? Não é à toa que a memória insiste em
trair a razão, esquecendo-se do que supostamente seria o essencial, guardando
com invulgar carinho o que teoricamente seria o supérfluo.
MARCUS FARBELOW - sociólogo e escreve no PortalPlenaGente+