Quando desouvir não é possível
Cabe
a nós escolher não dar corda a pseudo-argumentos.
Acordei hoje com a sensação de que os últimos nove meses
poderiam ter começado ontem.
Nos jornais, o hospital referência para casos de
Covid no Rio de Janeiro dá alta ao seu último paciente; o vacinômetro do Estado
de SP registra mais de 90% da população adulta completamente vacinada.
Enquanto
Estados Unidos e vários países da Europa pelejam para passar de insuficientes
60% da população vacinada, o Brasil finalmente dá show, como costumava dar
antes da internet.
Como poderia ter dado, quando a Pfizer propôs, num passado já
longínquo, usar a expertise brasileira em vacinação para dar exemplo ao mundo.
Até 2015, 97% das crianças recebiam vacinação completa contra pólio, sarampo e
tantas outras doenças completamente evitáveis.
Mas em 2020, segundo o Ministério da Saúde, foram apenas 75%. O
que também aconteceu no intervalo de apenas cinco anos?
A hesitação virou moda,
e as "mídias sociais" viraram o meio de consumo de pseudo-ceticismo
fashion. Mera coincidência, dirão os negacionistas.
Eu costumo torcer o nariz para esses tipos de maledicência fácil
em que se culpa o que há de mais novo na tecnologia pelos problemas da
humanidade.
Vou insistir que mesmo no caso da queda das taxas de vacinação no
Brasil, o problema são as pessoas, não as tecnologias.
Mas que as tecnologias ajudam, ah isso ajudam.
Pamela Paul, editora do New York Times, lista "Opiniões
impopulares" em seu novo livro como uma das "Cem coisas que perdemos
para a internet".
De fato, a democratização do acesso a megafones virtuais
em qualquer telefone deu voz às besteiras mais ignóbeis, antes sumariamente
eliminadas pelo crivo de editores de jornais, revistas e noticiários.
Opiniões
que antes morriam solitárias hoje viram notícia simplesmente porque aparecem em
tweets raivosos ou vídeo-pílulas legendadas e ficam populares.
Ou ficaram populares porque viraram notícia?
Qualquer que seja a verdade do biscoito Tostines da vez (jovens,
o YouTube explica), o fato é que aquilo que o cérebro ouve não pode ser
desouvido.
Uma vez que aprendemos o código da língua, ouvir ou ler palavras faz
o cérebro automaticamente processá-las, juntá-las, e encontrar sentidos que
evocam impressões, emoções e ações que então deixam suas marcas no mundo e na
memória.
Medo, em particular, é quase indelével, e inações motivadas por
medo são um tipo vil de profecia auto-realizada.
Claro que, sem vacinação,
casos de sarampo já voltaram a acontecer.
Pobrezinhas das crianças pobres
quando a poliomielite voltar nos locais sem esgoto, mas ao menos quando ela
chegar às cidades, pelo menos os hospitais já estarão equipados com os
respiradores artificiais deixados pelos pacientes de Covid.
Besteiras pronunciadas não podem ser desouvidas, mas podem não
ser espalhadas.
Assim como editorias são o córtex pré-frontal dos jornais, cabe
a nós escolher não dar corda a pseudo-argumentos. Vacinação previne vírus e
ideias tortas, mas, quando eles escapam, o que os mata é o isolamento.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL -
bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).