Culpar a pregabalina e a sertralina por uma
paranoia é um desserviço
- Usar remédios para justificar o ocorrido com Bolsonaro causa
desconforto para quem tem problemas com a saúde mental
- Quando uma figura pública fala algo assim, fala para milhões
Só
quem toma remédio psiquiátrico sabe a dificuldade em acertar dose, a frequência
e o próprio medicamento. É difícil para o médico estabelecer a prescrição mais
adequada quando estão em jogo tantas variáveis.
Cada paciente se comporta de um
jeito e o organismo também. E ainda existem os fatores externos, que também
contribuem para o resultado.
Ou seja, ter uma doença mental que exige o uso de
remédios é sempre uma condição muito delicada.
Meu
psiquiatra, por exemplo, me pede para não ler a bula. Isso porque sou muito
medrosa e hipocondríaca e logo começo a ter todos os efeitos colaterais, sem
efetivamente tê-los.
E isso atrapalha o tratamento e a confiança na palavra
dele.
Esses
últimos dias foram atribulados no país devido à prisão de Jair Bolsonaro. Fiquei acompanhando
as notícias, tanto no jornal impresso como na televisão e no rádio.
Em um dado
momento, meus remédios estavam ali, como parte das
informações. Pregabalina e sertralina.
Bolsonaro alegou ter tido alucinações porque
teria tomado esses remédios.
Eu tomo há mais de um ano e nunca tive. Na verdade,
quando passei pelo período do surto, eu não estava tomando nada.
E ele justificar o que fez atribuindo seu comportamento aos eventuais efeitos
colaterais dos medicamentos não é um desserviço sem tamanho para quem precisa
tomá-los e fica inseguro, como eu?
Para justificar a depredação da tornozeleira eletrônica, ele
achou a saída de culpar os remédios. Muito provavelmente com ajuda dos
advogados.
Que tipo de pessoas são essas? Não pensam que essa informação pode
causar desconforto em pacientes que sofrem em busca de um tratamento para a
doença mental?
Já ouvi pessoas do meu convívio dizerem que usam pregabalina e
também sertralina e nunca experimentaram um caso de surto/alucinação. Aliás,
meu próprio psiquiatra põe isso em dúvida.
Quando uma figura pública fala algo desse tipo,
fala para milhões. E muitos, tão vulneráveis quanto eu, ou até mais, acabam
absorvendo aquilo como verdade absoluta.
É falta de empatia e uma
irresponsabilidade. Não importa que haja médicos, especialistas e até
depoimentos pessoais que provem o contrário.
Quem já convive com a ansiedade, o medo e insegurança
em relação ao próprio tratamento, escuta aquilo e imediatamente se questiona:
"E se acontecer comigo? E se eu estiver correndo um risco que meu médico
não me contou?"
O que mais me assusta é perceber que, no fundo, não
houve ali nenhuma consideração por quem realmente depende desses medicamentos
para continuar vivendo com alguma estabilidade.
Foi só uma desculpa
conveniente, uma justificativa improvisada (e esfarrapada) para quebrar a
tornozeleira.
Mas que atinge justamente quem nunca deveria ser afetado: pessoas
que lutam diariamente para não perder o controle da própria saúde mental.
E é injusto. Injusto porque já enfrentamos muito
preconceito, muita desinformação, muita piada, muito julgamento.
No fim das contas, o que desejo é só que o debate
sobre saúde mental seja tratado com a seriedade que merece.
Que não vire
argumento político, desculpa pública ou manchete sensacionalista. Porque para
quem vive isso na pele, nada disso é brincadeira.
ALICE S. – blog Vida de Alcoólatra