Você não é a mamãe!


Ela é parte elefante, parte mágica.

Você não é a mamãe. Ela sabe tudo sobre a previsão do tempo, mas raramente acerta. Leva minha bota, meu chinelo e meu casaco e no fim, faça chuva ou faça sol, acaba provando que sabia. Ela entende sobre comidas que, se eu comer, derreterão meus dentes e meu cérebro e sobre as que salvarão minha vida. Ela é parte elefante e parte mágica. Lembra do lanche da escola, do presente dos colegas, da lição de casa, do treino de balé, da consulta médica. Essa é a parte elefante. E faz todas essas coisas aparecerem do nada. Essa é a parte mágica.

 

 

Você não é o papai. Ele é forte e pode me jogar bem alto, pois não vai me deixar cair. Faz meu rabo de cavalo com o aspirador de pó. As historinhas contadas por ele são as mais horripilantes, porque ele é muito corajoso e não deixa nenhum fantasma entrar em casa. Ele acalma a mamãe, quando ela fica nervosa por alguma coisa que ele fez ou deixou de fazer comigo. Nunca sei a diferença. Acho que ele também não.

Você não é a vovó. Ela pisca para mim quando recebe a lista do que eu não devo comer "de jeito nenhum!", porque ela já sabe que comer as comidas mais gostosas, de vez em quando, não mata. Sempre me defende, até quando eu mesma sei que estou errada. Pensa que são muito exigentes comigo e eu concordo totalmente.

Você não é o vovô. Ele não quer ficar me pegando no colo o tempo todo, porque sabe que eu já estou muito grande para isso. Não tem nada a ver com a dor na coluna. Ele não se preocupa com escola, hora de dormir, lição de casa porque ele não pode perder nem um minutinho do nosso tempo de brincadeiras juntos. Ele acha graça de tudo que eu faço, mesmo quando eu estou falando muito sério! Acho que só virando avô e avó para apostar que as coisas vão dar certo no final.

Você não é a professora. Ela sabe que eu paro de chorar assim que o portão da escola bate e só volto a chorar quando ele abre na saída. Ela tenta convencer meus pais disso, mas eles preferem acreditar que eu sinto falta deles o tempo todo. Eu também prefiro acreditar que eles sentem minha falta o tempo todo, mas estou muito desconfiada que não. Ela me ensina que tem outras crianças além de mim para ela cuidar. Eu não gosto nada disso, mas desconfio que esse é o único jeito de se ter amigos.

Você não é o meu padrinho. Quando ele vem em casa, eu sei que a hora de dormir já era. Meu padrinho diz que segue o método "rock'n roll" de ensino. Eu quero muito mudar para uma escola que também use esse método. Aprendi com ele que durante o futebol, se você soltar um palavrão é só pedir desculpa e não fica de castigo. Só vale enquanto a partida durar.

Você não é a Cida. Ela diz que tem uma filha da minha idade. Devo ser muito especial para ela preferir ficar comigo do que com a filha. Só não entendo com quem fica a filha dela, enquanto a Cida está em casa. Ela fala de um jeito diferente. Quando imito ela, reclamam. Vai entender!

Você não é minha melhor amiga. Não estamos inteiramente convencidas de que fazer coisas "erradas" é tão errado assim. Seguimos tentando provar nosso ponto, sem muito sucesso.

Vocênão é meu cachorro. Ele baba e não sabe fazer as coisas no banheiro —será que o bebê que vai chegar é um tipo de cachorro? Tomara. Ele é a única pessoa que abana o rabo para mim.

Você não é a minha mãe. Ela acha que é responsável e culpada por tudo que me acontece quando estou com o papai, o vovô, a vovó, minha professora, meu padrinho, a Cida, minha amiga e meu cachorro. Essa é a parte que eu menos entendo. 

 

Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: coluna jornal FSP

 

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