Ela
é parte elefante, parte mágica.
Você
não é a mamãe. Ela sabe tudo sobre a previsão do
tempo, mas raramente acerta. Leva minha bota, meu chinelo e meu casaco e no
fim, faça chuva ou faça sol, acaba provando que sabia. Ela entende sobre
comidas que, se eu comer, derreterão meus dentes e meu cérebro e sobre as que
salvarão minha vida. Ela é parte elefante e parte mágica. Lembra do lanche da
escola, do presente dos colegas, da lição de casa, do treino de balé, da
consulta médica. Essa é a parte elefante. E faz todas essas coisas aparecerem
do nada. Essa é a parte mágica.
Você
não é o papai. Ele é forte e pode me jogar bem alto,
pois não vai me deixar cair. Faz meu rabo de cavalo com o aspirador de pó. As historinhas contadas por ele são as mais
horripilantes, porque ele é muito corajoso e não deixa nenhum fantasma entrar
em casa. Ele acalma a mamãe, quando ela fica nervosa por alguma coisa que ele
fez ou deixou de fazer comigo. Nunca sei a diferença. Acho que ele também não.
Você
não é a vovó. Ela pisca para mim quando recebe a lista do que eu não devo comer
"de jeito nenhum!", porque ela já sabe que comer as comidas mais
gostosas, de vez em quando, não mata. Sempre me defende, até quando eu mesma
sei que estou errada. Pensa que são muito exigentes comigo e eu concordo
totalmente.
Você
não é o vovô. Ele não quer ficar me pegando no colo o tempo todo,
porque sabe que eu já estou muito grande para isso. Não tem nada a ver com a
dor na coluna. Ele não se preocupa com escola, hora de dormir, lição de casa
porque ele não pode perder nem um minutinho do nosso tempo de brincadeiras
juntos. Ele acha graça de tudo que eu faço, mesmo quando eu estou falando muito
sério! Acho que só virando avô e avó para apostar que as coisas vão dar certo
no final.
Você
não é a professora. Ela sabe que eu paro de chorar assim que o portão da escola
bate e só volto a chorar quando ele abre na saída. Ela tenta convencer meus
pais disso, mas eles preferem acreditar que eu sinto falta deles o tempo todo.
Eu também prefiro acreditar que eles sentem minha falta o tempo todo, mas estou
muito desconfiada que não. Ela me ensina que tem outras crianças além de mim
para ela cuidar. Eu não gosto nada disso, mas desconfio que esse é o único
jeito de se ter amigos.
Você
não é o meu padrinho. Quando ele vem em casa, eu sei que a hora de dormir já
era. Meu padrinho diz que segue o método "rock'n roll" de ensino. Eu
quero muito mudar para uma escola que também use esse método. Aprendi com ele
que durante o futebol, se você soltar um palavrão é só pedir desculpa e não
fica de castigo. Só vale enquanto a partida durar.
Você
não é a Cida. Ela diz que tem uma filha da minha idade. Devo ser muito especial
para ela preferir ficar comigo do que com a filha. Só não entendo com quem fica
a filha dela, enquanto a Cida está em casa. Ela fala de um jeito diferente.
Quando imito ela, reclamam. Vai entender!
Você
não é minha melhor amiga. Não estamos inteiramente convencidas de que fazer
coisas "erradas" é tão errado assim. Seguimos tentando provar nosso
ponto, sem muito sucesso.
Vocênão é meu cachorro. Ele baba e não sabe fazer as coisas no banheiro
—será que o bebê que vai chegar é um tipo de cachorro? Tomara. Ele é a única
pessoa que abana o rabo para mim.
Você não é a minha mãe. Ela acha
que é responsável e culpada por tudo que me acontece quando estou com o papai,
o vovô, a vovó, minha professora, meu padrinho, a Cida, minha amiga e meu
cachorro. Essa é a parte que eu menos entendo.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar
na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP