Filosofia
de Bar, Fatos e Narrativas
A arte de ser sábio é a de saber o que ignorar.
William James
Eles o chamam de Professor, Filósofo,
Analista, mas ninguém sabe exatamente o que ele é, nem o que leciona. Às
sextas-feiras, vai ao Bar do Bigode para tomar cerveja, filosofar e os clientes
ficam ansiosos para beber, petiscar e ouvir seus ensinamentos. O Professor tem
mesa fixa e as pessoas disputam os lugares próximos, como Allan Gerrí, fã de
carteirinha. Reflexões da última sexta:
O mundo está cheio de obviedades que ninguém
enxerga – diz o Professor. É difícil ler jornal, assistir noticiário, ouvir uma
análise e compreender o que foi escrito, visto ou dito. Parece que só as mentes
privilegiadas compreendem, pois o discurso muda o tempo todo, em favor de quem
pagar mais. Um fato costuma ser o que parece, mas é incrível como a narrativa
distorce. Tem gente que distorce os fatos para se encaixarem na sua ideologia.
Nas palavras de Mark Twain, a narrativa faz mais sentido do que a verdade.
Todos têm direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos.
Quando o Professor fez uma pausa para dar um “tapa”
na cerveja, notou os clientes boquiabertos: uns pensativos, outros fazendo
“cara de conteúdo” e outros apenas sonolentos e babando álcool. Ele sabe que
está agradando e curte o momento.
·
Existe mais de uma
interpretação para um mesmo fato? – perguntou Allan.
·
Sim – respondeu o
Professor. Umas pertinentes e outras pura baboseira. Os insensatos inventam
termos como “despiorar” e relativizar. Se confrontados, culpam os outros pelos
seus erros ou dão respostas evasivas. Tentam cruzar cabra com periscópio para
gerar um bode expiatório.
O Professor explicou o é “bode expiatório”, os
clientes se admiraram e o Bigode ficou contente com o consumo. Então ele contou
a fábula dos cegos colocados diante de um elefante: Um cego apalpou a pata
disse que o elefante parece uma árvore; outro tocou a barriga e achou que fosse
uma parede; o rabo parece uma corda e a tromba uma cobra. Nenhum deles teve a
noção do todo. Muitos não cegos enxergam somente o que querem ver, ignoram o
restante e distorcem a análise.
Allan Gerrí anota tudo para reler depois. Sujeito
simples, com pouca instrução, ingênuo e ansioso por aprender, ousou
comentar:
·
Os políticos dizem
que vão trabalhar para o povo, mas depois enganam o eleitor. Prometem
acabar com a corrupção e acabam se metendo em escândalos financeiros.
·
Mark Twain disse
que, se votar fizesse diferença, eles não nos deixariam fazer isso. Para Millor
Fernandes, acabar com a corrupção é o objetivo de todos aqueles que ainda não
chegaram ao poder.
·
Verdade! Quando
chegam lá, parece que o poder muda as pessoas.
·
Abraham Lincoln
diria que o poder não muda ninguém, apenas revela seu verdadeiro caráter.
Após 150 minutos filosofando e respondendo
perguntas, o Professor se retirou, muito aplaudido. Dirigiu-se ao Caixa, não
para pagar a conta, mas receber a taxa que o Bigode cobra dos clientes e
combinar o tema da próxima sexta. Aí ele pesquisa na Internet e nas anotações
da prima, estagiária de jornalismo. Ele não é intelectual. É apenas convincente
e tem boa lábia.
Allan Gerrí foi para casa repetindo: Muitos fatos
são exatamente o que parecem; As pessoas criam narrativas para adequar o fato à
ideologia; Besteiras são sempre besteiras, mesmo quando ditas por gente
importante; O sábio muda de opinião, o idiota nunca. Allan ama citar frases
famosas.
Próximo ao predinho onde mora, viu a vizinha Mia
Kuda escorregar e cair sentada. Allan levou Mia para o apartamento dela, com
tornozelo inchado e hematoma na coxa. O cóccix doía e ela gemia. Mia Kuda
queria comprar lingerie, pois só tem sutiãs frouxos e está praticamente sem
calcinhas. Escorregou, caiu, se sujou e se machucou. Pediu para o vizinho
ajudá-la no banho, depois passar pomada e massagear as áreas doloridas. A
esposa de Allan escutou os gemidos, levantou-se, colou a orelha na porta do
apartamento da vizinha e ouviu:
·
Mais força,
querido. Não tenha dó. Ah, que delícia! Você é perfeito, Allan!
·
Estou dando o
melhor de mim. Quer mais uma vez na coxa?
·
Já é tarde e estou
cansada. Me deixa dormir. Amanhã a gente continua.
Allan ficou feliz por ter ajudado Mia, mas ao sair,
deu de cara com a mulher. Muito irritada, ela disse que ia levar um
papinho com a safada e mais tarde cuidaria dele.
·
Agora não é uma
boa hora. As coxas e o cóccix doem muito e acho que Mia já dormiu. Além disso,
ela está sem calcinha!
A mulher de Allan o deixou e ele não sabe quando
terá alta. Ao comentar o caso, o Professor disse que o fatos pode ter
diferentes interpretações. As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar e,
para muitos, vale mais a própria versão que o fato em si. Vida que segue!
LAERTE TEMPLE - administrador, advogado, doutor, professor
universitário. Autor de Humor na Quarentena (Kindle) e Todos a Bordo (Kindle).