Deveria pensar duas vezes quem
estiver convencido de que a escrita à mão caminha para se tornar obsoleta –em
particular se tiver filhos pequenos. Tudo indica que essa habilidade é crucial
para aprender a ler e a pensar.
Repare na moça ou moço bonito a
seu lado no metrô. Enquanto seus polegares deslizam fluidos pela telinha do
celular, escrevendo mensagens, parece impossível reter a crença de que
caligrafia ainda sirva para alguma coisa.
Quem se importa? Lápis e papel
são coisas do passado, não contribuem para se conectar a nada no mundo digital,
tornando-se assim inúteis.
Com os smartphones, até mesmo
laptops já viram peça de museu. Se antes ensinar a escrever à mão ia perdendo
prioridade nos sistemas educacionais, não tardará o momento em que alguém vai
defender alfabetizar a criançada direto com letras numa tela.
Será um erro crasso.
Há pencas de estudos mostrando
que escrever à mão de maneira legível e rápida tem correlação estreita com
desempenho escolar. Vai bem na escola quem escreve direito (médicos sendo a
exceção que confirma a regra).
Os gaiatos dirão que
professores preferem os alunos com letra bonita e os premiam com notas
melhores. Pode ser. Mas há algo mais em jogo a sugerir que vale a pena
dedicar-se a fazer meninas e meninos trabalharem mais com lápis e papel.
E quanto mais cedo melhor.
Crianças de dois e três anos já estão aptas a experimentar com riscos que as
prepararão aos quatro ou cinco para produzir formas geométricas e, depois,
letras de fôrma completas.
A partir daí entra em cena, ou
deveria, a escrita cursiva. Teclados e telas, só mais para o fim do ensino
fundamental 1.
Desenhar os caracteres de
maneira contínua, conectando-os uns aos outros, prepara o cérebro para ler.
Facilita fixar a correspondência entre grupos de signos e a unidade de sílabas,
ou palavras inteiras.
Nossos cérebros precisam ser
empurrados na direção certa. Eles não forem feitos para ler e escrever. Essa
atividade só se tornou possível porque cooptou para a tarefa uma área conhecida
como giro fusiforme, envolvida também no reconhecimento de rostos.
Como tudo em educação, o
sucesso desse recrutamento depende de exercício. Se não fosse o receio de soar
antiquado demais, diria até ser o caso de considerar seriamente a ressurreição
dos cadernos de caligrafia.
Ainda me lembro de ficar com o giro fusiforme em brasa (metaforicamente
falando), os dedos suados e o médio da mão direita vermelho na primeira
falange, ainda desprovida de calo, diante daquelas três raias em que precisava
fazer correr o grafite errático -sem calcar demais.
Maiúsculas e minúsculas como
"t" tinham de tocar o limite superior; vogais minúsculas ficavam
espremidas na linha do meio; a perna do "p" se esticava toda para
baixo. E repetições, muitas: "A casa do João é bonita".
Hoje me espanto, nas raras
ocasiões em que a pessoa à minha frente precisa escrever algo à mão, ao ver que
ela não tem calo no dedo médio. A maioria nem o emprega para segurar a caneta
Bic, apoia direto no anular, ou a segura com quem pega uma pitada de farinha.
Até hoje tomo notas à mão e
gravo melhor os argumentos quando posso sublinhá-los no papel. Gesto e memória
caminham juntos –e juntos chegam mais longe.
Marcelo
Leite – colunista e repórter especial da Folha, autor dos
livros 'Folha Explica Darwin' (Publifolha) e 'Ciência - Use com Cuidado'
(Unicamp).
Fonte:
jornal FSP