Uma mudança ideológica não vai melhorar o ranking do Brasil em educação
Estou na Flórida, em Miami, no momento. Segunda, dia 31, precisei passar no banco, e, antes de sair de casa, verifiquei os horários. Pensei: vai que, por ser véspera de Ano-Novo, eles fechem antes da hora.
No site, não dizia se haveria mudanças. Preferi telefonar, por segurança. Escutei a gravação do serviço automático: “de segunda a quinta, das 9 às 16, na sexta…” Aqui eu tive tempo de antecipar como lógica uma mudança para menos --na sexta, o banco, imaginei, vai fechar às 14, deve ser isso, para que os funcionários possam viajar mais cedo para o fim de semana. Mas errei: na sexta o banco fica aberto até mais tarde, até 18 horas.
Ilustração de Mariza Dias Costa publicada nesta quinta-feira, 3 de janeiro de 2018 -
De qualquer forma, aliás, o fim de semana não começa na sexta, pois o mesmo serviço me informou que o banco também abre sábado de manhã.
Pensei nisso (e na “deformação” cultural brasileira que me fez prever horários especiais de véspera de feriado) ao ler, mais tarde, o tuíte do presidente Bolsonaro, em que ele escreveu: “Uma das metas para tirarmos o Brasil das piores posições nos rankings de educação do mundo é combater o lixo marxista que se instalou nas instituições de ensino”.
Quem dera fosse tão fácil. Infelizmente, uma mudança ideológica não vai melhorar o ranking do Brasil em matéria de educação. Para isso, precisaria estender o calendário escolar, aumentar a carga horária dos estudantes, esperar deles muito, mas muito mais do que é exigido hoje e, claro, melhorar significativamente a formação e os salários dos professores.
Dessa lista não faz parte a reza de nenhuma cartilha. Nosso ensino não é ruim porque haveria professores marxistas e não vai melhorar só porque os professores no futuro serão carolas.
Desse ponto de vista, aliás, daria para argumentar que, com o domínio dos carolas, o ensino piorará. Explico: em regra geral, qualquer visão do mundo ou ideia, quando ela é dominante (ainda mais quando ela é expressão do poder político instituído), torna-se lixo.
Por exemplo, se você quer entender o que foi a Revolução Cubana, o último lugar para estudar é Cuba. O mesmo vale para entender o bolivarianismo venezuelano: não vá para Caracas. E você imaginou o que era estudar história do século 20 na ex-União Soviética, antes da queda do Muro de Berlim?
O mesmo vale, por exemplo, para o estudo da história contemporânea nos EUA na época da caça às bruxas macartista, nos anos 1950.
Em qualquer um desses lugares, o espaço para algumas faíscas de senso crítico era mínimo ou nulo. E as chances eram (ou são) grandes de aprender só lixo.
O ponto de vista crítico, que questiona a ordem estabelecida e o conteúdo que está sendo ensinado, é a atitude que mais leva o estudante a pensar, investigar, estudar um pouco além do que é óbvio e prescrito.
Ser cristão trocando “samizdats” proibidos era provavelmente o melhor jeito de ser estudante na União Soviética até os anos 1990. Assim como ser de esquerda às escondidas era o melhor jeito nos Estados Unidos dos anos 1950 (e ainda seja, hoje, em alguns estados americanos).
A cultura oficial e de governo é lixo porque só é ciosa de sua reprodução igual na consciência de todos. O que se opõe a ela pode valer pouco como conhecimento, mas tem a função de fomentar o senso crítico dos estudantes. Por exemplo, eu acho o cristianismo nacionalista à la Soljenitsin uma chatice medíocre, mas, para muitos, ele foi o observatório que permitiu enxergar uma outra Rússia.
Na segunda parte do tuíte, o presidente Bolsonaro explicita seu propósito: “vamos evoluir em formar cidadãos e não mais militantes políticos”. Certo, mas o problema é: o que é um cidadão?
Os cidadãos sem senso crítico são, de fato, os militantes políticos mais perigosos: emissários e informantes da ordem estabelecida.
Desde a aurora do mundo moderno, o exercício efetivo da cidadania se confunde com o exercício da oposição. Talvez, no nosso sistema atual, no Brasil, os argumentos da oposição tenham uma referência (vaga) no marxismo --digamos que sejam “marxistas”. Eu preferiria que fossem hedonistas, mas tanto faz: o essencial, para mim, é que nossas crianças aprendam a olhar para o mundo e a entendê-lo criticando, opondo-se, imaginando e inventando outros mundos.
Aliás, estes são meus votos para o ano que começa: que sejamos e continuemos todos, crianças e adultos, capazes de imaginar outros mundos, possíveis e impossíveis.
Feliz 2019.
Contardo Calligaris - psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO)
Fonte: coluna jornal FSP