Quando o cérebro dá ouvidos ao corpo
É
difícil manter a mente sã quando o corpo não está lá muito são.
"Estado de espírito" é uma expressão bem mais bonita
do que "estado do cérebro", eu concordo –mas a segunda é a opção
cientificamente correta para descrever como a gente se sente em termos de
disposição e motivação.
Afinal, o que a gente faz de fato depende não só das
ordens que o cérebro dá para os músculos se moverem mas também do que o cérebro
julga ser digno do esforço para começo de conversa.
O detalhe interessante, contudo, é que dois estudos publicados
recentemente mostram que o corpo, para além do cérebro, tem uma voz e tanto no
que o cérebro aceita fazer.
O primeiro estudo, feito na Universidade Harvard,
nos EUA, começou com uma pergunta daquelas simples, que muitos achavam que já
estava respondida: por que uma infecção –gripe ou um resfriado comum– deixa a
gente arriado, letárgico, sem vontade pra nada, nem mesmo comer?
A palavra
"inflamação" certamente faz parte da resposta, porque
anti-inflamatórios como aspirina e ibuprofeno ajudam a melhorar o tal do estado
de espírito, além de aliviar as sensações negativas do corpo.
Daí à inflamação chegar ao cérebro são outros
quinhentos.
Usando aquelas ferramentas genéticas que exigem um
bocado de dinheiro e que pesquisadores brasileiros em geral só usam quando
atuam no exterior, o grupo de Stephen Liberles, em Harvard, descobriu que a infecção com o vírus da
gripe deixa camundongos letárgicos e inapetentes, como a gente, por conta da
inflamação –mas seu efeito no cérebro não passa pelo sangue, e sim por
neurônios que representam especificamente o estado inflamado da garganta e das
vias nasais.
Se esses neurônios forem silenciados por
manipulação genética, os animais gripados continuam lépidos e com apetite.
Inclusive têm muito mais chance de sobreviver à gripe, o que mostra que a
letargia não tem nada de "adaptativa".
Muito pelo contrário:
sobrevive-se à gripe apesar da inapetência.
O segundo estudo, liderado por Karl Deisseroth,
cientista da Universidade Stanford, também nos EUA, publicamente cotado ao
Prêmio Nobel, usou o controle da expressão gênica por laser, truque inventado
por Deisseroth, para controlar não o cérebro de camundongos, mas seu coração.
Pergunta: seria um episódio de taquicardia provocado experimentalmente capaz
de deixar os animais ansiosos,
como em casos de taquicardia espontânea que surgem em ataques de ansiedade?
A resposta, muito claramente, é sim –e porque o
cérebro, sempre ele, detecta a taquicardia que ele não provocou e atualiza
mesmo assim a representação do corpo para incluir a nova realidade.
Em contextos absolutamente inócuos, taquicardia é só
taquicardia, e nada muda para o animal.
Mas em contextos naturalmente
inquietantes, como lugares elevados e abertos são para camundongos (e muita
gente), a taquicardia vinda "do nada", quer dizer, do laser dos
pesquisadores apontado para o coração, é suficiente para deixar os animais
visivelmente hesitantes e ansiosos.
Os dois estudos concordam: manter a mente sã quando o corpo não
está lá muito são é difícil...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).