A dopamina do cachorro do Pavlov


A dopamina do cachorro do Pavlov

Novo estudo sugere que mesmo o condicionamento requer memória.

Eu francamente me divirto com o contorcionismo de alguns colegas para diferenciar humanos de outros animais, ou os animais "inteligentes" dos outros.

Poucos anos atrás, numa reunião de especialistas em comportamento animal (o que eu certamente não sou), descobri que eles distinguiam entre "aprendizado" e "condicionamento"

Não que eles tivessem uma definição muito precisa para nenhum dos dois termos, mas ficou claro que, para eles, o que pode ser aprendido por "condicionamento" não era aprendizado.

Por que isso importa? Porque, para esses colegas, o que se aprende na escola, ou na vida, não é "puramente condicionado", mas aprendido às custas de ruminação consciente.

Ah como eu queria ver a cara desses colegas lendo o número mais recente da revista Science, onde um grupo de pesquisadores liderado por Vijay Namboodiri, na Universidade da Califórnia em San Francisco, propõe nada menos que uma revolução na maneira de pensar sobre aprendizado.

O problema é que a versão simples da história da "dopamina-dá-prazer" ou "dopamina-prediz-recompensa" é justamente simples demais. 

Aqui na (Universidade) Vanderbilt, temos nossa própria especialista em dopamina, a Erin Calipari, que conta para quem quiser ouvir os vários furos na história. 

O trabalho dela, lindo, mostra que a dopamina faz algo muito mais interessante —que eu resumo para ela como sinalizar o que "vale o esforço".

Namboodiri e sua equipe mostram algo parecido, e vão além: propõem que a dopamina sinaliza não apenas o que VAI ser bom e prospectivamente vale o esforço, mas também o que foi bom, e retrospectivamente já valeu o esforço. 

Feito isso, o animal combina a dopamina com a memória do que ele acabou de fazer e pronto: tem-se uma associação formada entre causa e efeito.

A diferença, que explica muita coisa, é que não importa quão ruim seja o preditor; o que importa é o resultado. 

Isso resolve, por exemplo, o mistério da roleta e outros jogos de apostas serem tão envolventes e até viciantes, apesar da chance de lucro com a sua ação —a aposta— ser mínima.

Prospectivamente, a chance de o "seu" número sair quando você aposta na roleta é ínfima. Mas retrospectivamente, toda vez que o seu número de fato sai, é porque... você apostou na roleta (ou não seria o "seu" número). De onde: jogar na roleta (a ação) é potencialmente lucrativo (o resultado).

Claro, juntar uma coisa com a outra exige ter memória de que você acabou de apostar na roleta – mas isso o cérebro faz quase que por definição: o cérebro cria representações de eventos, e se a memória é simplesmente a reativação dessas representações, então quem tem cérebro tem memória, oras.

O que quer dizer que o cachorro do Pavlov, que foi "condicionado" a salivar toda vez que ouvia a sineta que anunciava a refeição iminente, genuinamente aprendeu a associar a comida com a memória da sineta.

Como meu pai sempre lembra: por menor que seja a probabilidade, só ganha na loteria... quem joga na loteria, e mesmo que ele não tenha ganhado até hoje, o fato de alguém ganhar já é prova suficiente de que o esforço pode valer a pena.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

 

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