“Eu
não aguento mais todo mundo falando da mídia esportiva. Eu gostaria (...) que
dessem nome aos bois nos seus artigos. (...) Ficaria mais fácil, para não botar
todo mundo no mesmo saco.”
O
desabafo do comentarista José Trajano, na abertura do programa Linha de
Passe, da ESPN, no sábado (12/7) em que a seleção brasileira se despediu
melancolicamente da Copa, expressa uma justa insatisfação com a generalização
da crítica. O comentário, no caso, tem ainda mais relevância porque essa
generalização é recorrente quando se trata de discutir o jornalismo esportivo.
Tradicionalmente,
esportes e polícia são editorias menosprezadas na hierarquia dos jornais de
referência. Política e economia, sim, teriam outro status, estariam dedicadas
às grandes questões de interesse público.
Talvez
por isso seja tão fácil falar em promiscuidade na relação entre fontes e
jornalistas, quando se trata de futebol ou de crime. Como se isso não ocorresse
nas tais áreas “nobres” do jornalismo. Como se esta não fosse uma questão ética
comum a todos os setores da imprensa. Como se, em todos os setores, não
houvesse jornalistas e jornalistas.
Jornalismo
e marketing
O
problema é que, no caso dos esportes, talvez as coisas sejam mais evidentes.
Nem se fale do repórter que, desde muito tempo, ganhava por fora pelo número de
vezes que repetisse o nome do patrocinador de um atleta ou evento. Ou dos
jornalistas-empresários, que também desde muito tempo misturam o que é
eticamente inaceitável: seus interesses particulares com seu compromisso com a
informação. O mais flagrante, porém, é a associação entre grandes empresas de
comunicação e as competições esportivas, especialmente um megaevento como a
Copa do Mundo.
O
caso mais óbvio é o da Rede Globo, que promove e faz parte do show. Mas na TV
paga e, também, em meios impressos – notadamente no espaço de colunistas,
reproduzidos na internet –, o quadro é diferente. Aí, o marketing não consegue
sufocar o jornalismo. Sobretudo quando o marketing é mal feito, como aconteceu
desta vez com a seleção brasileira, embora mesmo o melhor marketing tivesse
dificuldade de vender como positiva uma grosseria como a do técnico que manda
os descontentes para o inferno – ainda mais às vésperas de um inédito e
retumbante fracasso – e de preservar uma imagem de competência contra as evidências
mais elementares.
Um
difícil equilíbrio
Mas
não é apenas para não cometer injustiças que a crítica precisaria levar em
conta os exemplos à contracorrente. É porque nesta, como talvez em nenhuma
outra área, o trabalho jornalístico enfrenta a suprema dificuldade de articular
emoção e razão. Ainda mais no Brasil, onde o futebol se enraizou como elemento
fundamental de cultura e, pelas paixões que desperta, presta-se a múltiplas
tentativas de manipulação, sobretudo nas patriotadas que exploram o orgulho
nacional.
Tentar
assimilar o espírito do torcedor, colocar-se no lugar dele para traduzir as
emoções de uma partida e ao mesmo tempo manter o senso crítico, tanto na
análise do jogo quanto na exposição das jogadas políticas sobre o funcionamento
do mundo do esporte, não é tarefa para qualquer um.
Um
pouco de imaginação
Equilíbrio,
porém, era tudo o que não existia na tradição de nossa imprensa esportiva. Essa
constatação, aliás, permitiu uma inspirada e original interpretação sobre o
papel dos locutores de rádio na formação do aclamado – e hoje decadente, apesar
da sobrevivência do mito – estilo brasileiro de jogar. Em O drible,
Sérgio Rodrigues solta a imaginação através de um dos principais personagens do
romance, um famoso cronista esportivo dos tempos em que a nossa seleção
começava a encantar o mundo. Ao recordar a tese de Mário Filho sobre o papel do
negro no futebol brasileiro, o velho cronista observa:
“A dívida do nosso futebol é
pelo menos tão grande com o gongorismo dos narradores também. (...) sem a nossa
vocação doentia para a metáfora bombástica, o papo furado, o causo
inverossímil, a gente não teria chegado tão longe. Mais de noventa por cento do
público só tinha acesso ao futebol pelo rádio, e no rádio qualquer pelada
chinfrim disputada em câmera lenta por perebas com barriga d’água ficava cheia
de som e fúria. A cada cinco minutos os narradores faziam um zé-mané qualquer
aprontar um feito de deus do Olimpo. Claro que esse descompasso entre palavras
e coisas era inviável a longo prazo, não tinha como se sustentar. E como
obrigar a narração radiofônica a ficar sóbria estava fora de questão, restava
reformar a realidade. Foi assim que o futebol brasileiro virou o que é: em
grande parte por causa do esforço sobre-humano que os jogadores tiveram que
fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam”.
É, no
mínimo, uma bem-humorada explicação. Uma bela hipótese, a demonstrar que, sem
um pouco de imaginação, não se conta uma boa história.
Sylvia Debossan Moretzsohn - jornalista, professora
da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel
dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas,
2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao
senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: site Observatório da Imprensa