Epilepsia já tem cura
Mas essa cura chegar a quem
precisa vai depender do governo
É nos congressos científicos mundo afora, onde
pesquisadores se reúnem para trocar figurinhas, que a gente descobre o que os
colegas estão fazendo —em geral uns dois anos antes de os resultados serem
publicados oficialmente.
E é também nesses congressos que temos oportunidade
de ouvir, diretamente dos envolvidos, histórias de sucesso, algumas
sensacionais.
Por exemplo: acabo de descobrir, aqui em Zadar, na
Croácia, que meus colegas já conseguiram essencialmente curar a epilepsia em
camundongos... e humanos.
A epilepsia existe em várias formas, com surtos que
surgem de focos diferentes em cada paciente. Mas uma forma comum é a epilepsia
do lobo temporal, centrada no hipocampo.
Essa é a parte do córtex cerebral que
funciona como um carrossel que gira permanentemente, associando novos eventos
em memórias.
Mas todas as formas de epilepsia têm uma coisa em
comum: as crises são surtos de hiperatividade neuronal que escapa ao controle
de um "freio" que toda parte de todo cérebro tem embutida.
Esse freio
são os interneurônios, neurônios inibitórios, cuja atividade suprime a
atividade de outros neurônios.
A causa da insuficiência desse freio embutido varia
de um paciente para outro, mas o resultado é o mesmo.
Sem o freio, a atividade
dos outros neurônios, que excitam uns aos outros, cresce como uma bola de neve
e culmina em um surto que toma conta do resto do cérebro e impede seu
funcionamento normal –até que os neurônios hiperativos, exauridos, finalmente
se silenciem.
Pois, 16 anos atrás, os neurocientistas fundadores da
empresa Neurona
Therapeutics, em San Francisco (EUA),
apostaram em uma solução para a epilepsia do lobo temporal: usar suas
descobertas sobre como transformar células-tronco embrionárias em
interneurônios, as células-freio, para produzir e então injetar interneurônios
novos no hipocampo de pacientes, potencialmente restaurando o freio interno.
O caminho até chegar a pacientes humanos é
necessariamente longo, pois envolve pesquisa primeiro em camundongos para
estabelecer que o tratamento não apenas funciona como é seguro e sem efeitos
colaterais.
Mas a injeção de interneurônios curou a epilepsia de camundongos e
já devolveu qualidade de vida a nove entre dez pacientes humanos com epilepsia
que tiveram a coragem, e a sorte, de se submeter à cirurgia de transferência
dos neurônios.
Maravilha: lindo exemplo de ciência básica gerando
aplicações práticas que melhoram vidas. O problema agora é como estender o
tratamento a quem precisa.
Todos os custos até o momento foram arcados pela
Neurona, graças a seus investidores –que querem um dia ter lucro.
De onde virá
esse lucro? Da eventual venda a uma gigante farmacêutica ou da abertura da
empresa a acionistas.
Só que o número de pacientes que precisam desse
tratamento é pequeno demais –cinco pessoas em um milhão– para o tratamento ser
rentável sem custar... milhões por paciente.
Qual seguradora vai pagar isso?
Pois é. Curar a doença de poucos não dá lucro a ninguém.
Minha predição, portanto: ou alguma empresa topa
bancar o procedimento em nome de publicidade, ou o tratamento será engavetado
–a não ser que instituições governamentais de pesquisa e saúde, como a Fiocruz brasileira, assumam a sua função
de cuidar da saúde dos seus cidadãos, inclusive os poucos que sofrem de
epilepsia.
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA)