Duas invenções do começo deste século mudaram a forma de acessar o cérebro
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Toda investigação começa com observação inspirada por uma pergunta. Em ciência não é diferente —apenas muitas das questões colocadas não podem ser respondidas com simples observação a olho nu, por causa da natureza dos investigados. Pequenos demais ou grandes demais, ora transparentes ora exuberantes, os objetos de investigação científica dependem de criação da tecnologia que os torne acessíveis à nossa curiosidade.
É o caso do cérebro. Seus componentes são inescrutáveis porque pequenos demais, mas um microscópio, que amplia a imagem de objetos através de arranjos de lentes de vidro, resolve isso. O problema é que, rico em gordura, o órgão é opaco: a luz se espalha ao entrar e não o atravessa. Cortar o cérebro em fatias finas resolve o problema da opacidade, mas destrói a estrutura.
Duas invenções do começo deste século mudaram nosso alcance de maneira complementar. Uma foi o desenvolvimento pelo neurocientista estadunidense Karl Deisseroth, na Universidade Stanford, de uma técnica que torna tecidos biológicos transparentes: CLARITY (assim mesmo, em maiúsculas, pois o nome completo, bem ao gosto de cientistas, é uma abreviação esperta de uma descrição trava-línguas).
A outra invenção foi uma sacada genial que modificou a microscopia tradicional. A nova modalidade usa não um, mas dois conjuntos de lentes: um, como de hábito, amplia a imagem do objeto; um segundo focaliza três ou seis feixes de lasers, e não um só, em um finíssimo lençol de luz que atravessa e ilumina um plano do objeto transparente em frente aos olhos. Não é preciso cortar o objeto: a luz faz isso.
Combinadas, as duas tecnologias permitem a visualização de cérebros inteiros de animais pequenos, a estrutura tridimensional do globo ocular com todos os fotorreceptores, vasos e nervos no lugar, cubos de cérebros humanos e até mesmo embriões intactos.
Essas tecnologias, criadas por cientistas com o intuito único da observação que não enche imediatamente os bolsos de ninguém, abriram as portas para toda uma nova geração de descobertas.
Naturalmente, há um preço. Um microscópio desses custa sozinho cerca de US$ 300 mil —mais de R$ 1 milhão. Quando eu saí do Brasil, o financiamento máximo que o governo federal pagava a um pesquisador, quando pagava, era um total de R$ 100 mil ao longo de três anos. Façam as contas...
Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA)
Fonte: coluna jornal FSP