Se o Estado está se revelando
incapaz de desempenhar uma de suas funções básicas, a de fornecer com
regularidade água potável para a sociedade, e se a mídia tem se mostrado
passiva em relação ao descaso, certamente o cidadão deve tomar iniciativas para
assegurar o mínimo de bem-estar a que tem direito.
Essa pode ser, agora, a única
possibilidade de algum encaminhamento promissor. E a medida mais prática para
isso ?? a menos que as chuvas cessem completamente ?? é a construção de
reservatórios para estocagem das águas que, ausentes das torneiras, fluem
perdidas para o leito de rios, riachos e ribeirões, mas, antes disso, inundam
vias públicas e moradias produzindo cenas comparáveis à de um país rural. Ainda
que o Brasil tenha concluído, a duras penas, sua urbanização nos anos 1970.
Mas, para substituir mais uma
das funções do Estado ? o que já ocorre com parte da segurança pública,
assistência social, educação e saúde, entre outras ? o cidadão deve ter direito
a um mínimo de ressarcimento, sugestão que pode incomodar administradores
públicos ? por aqui quase sempre referidos como “autoridades” ? pelo que pode
parecer ousadia despropositada.
A questão, no entanto, é
simples e, se tomada em conjunto, pode ao menos amenizar a situação que se
encaminha para um ponto crítico, talvez insustentável, por ausência de
planejamento, iniciativa responsável e visão de uns poucos palmos além do
nariz.
Para ter mais
representatividade ? e, neste sentido, estimular a opinião pública ? a ideia de
que o Estado deva arcar com parte dos custos de iniciativas de cada cidadão
talvez devesse ser encaminhada por uma entidade pública: uma das numerosas ONGs
já organizadas para fazer o que não é feito pelo Estado, eventualmente uma
entidade de classe de engenheiros, arquitetos, advogados. Ou mesmo jornalistas,
entre outras categorias profissionais.
Essa iniciativa poderia
reunir principalmente moradores de casas, ainda que não dispense o envolvimento
coletivo de moradores de edifícios. Caixas de captação de águas pluviais, com
um registro formal ? não necessariamente burocrático, caso contrário não iria
funcionar ? deveriam ter sua execução feita a partir de pequenos projetos que,
apresentados nas administrações de uma metrópole como São Paulo, renderia, por
exemplo, descontos absolutamente procedentes no Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU).
Críticos apressados podem
disparar que isso não faz sentido, porque o IPTU é cobrado pelas prefeituras
enquanto, no caso de São Paulo, é uma empresa mista, a Sabesp, quem deveria
assegurar o abastecimento de água.
Nenhum desafio para a
capacidade de computação que caracteriza o século 21. As prefeituras
comunicariam o Estado de quanto foi o desconto no imposto pela construção das
caixas de captação de águas pluviais e o Estado transferiria esse valor aos
cofres municipais.
Por que o argumento de que o
Estado deve arcar com essas despesas, ao menos em parte, ainda que o justo seja
a totalidade?
Impostos
não justificados
Por que o Estado recolhe
tributos para, entre outras obrigações, assegurar o abastecimento de água
potável, mas, como não fez isso, o resultado é a crise das torneiras vazias que
deve piorar com o fim das chuvas de verão. Mas também porque a captação de
águas fluviais para um uso geral ? reservando-se a água tratada para consumo
direto ? vai aliviar a pressão de demanda e, neste sentido, ao menos durante
certo tempo, evitar investimentos pesados para captação de água rara e cada vez
mais distante.
Parte da opinião pública, em
especial a mais engajada do ponto de vista político-partidário, pode
argumentar, com a estratégia típica da avestruz, que a falta de água se explica
por um fenômeno da Natureza, a estiagem que compromete os reservatórios
disponíveis. O argumento da estiagem não deixa de ser verdade, mas não é toda
ela e isso é o que distingue radicalmente as coisas em situações como a que
estamos vivendo.
É verdade, por exemplo, que
as chuvas rarearam em 2014. Mas é verdade também que o processo de aquecimento
global com mudanças climáticas em curso deveria ter sido levado em conta pelos
administradores públicos. Especialmente o governo de um Estado com a
importância estratégica de São Paulo para a economia e desenvolvimento do país.
Há décadas, e relatórios
internos da própria Sabesp já preveniam para isso, o abastecimento hídrico de
São Paulo é precário e exige medidas corajosas e lúcidas para ser ampliado, de
forma a não deixar a população e a atividade econômica reféns de um fenômeno da
Natureza.
Ainda não dominamos a
Natureza, apesar das previsões temerárias de Francis Bacon, um dos pais da
ciência moderna. E, se dominássemos, economistas que assessoram administradores
públicos já teriam encontrado uma maneira de nos levar a situações piores que
as criadas por fenômenos naturais.
Até onde pôde, o governador
de São Paulo rejeitou a dimensão da crise hídrica da cidade de São Paulo e de
boa parte do interior do Estado. E quando se referiu ao problema, sempre
atribuiu a culpa à intemperança de São Pedro. Foi neste contexto que toda a
mídia, em especial os jornais, com a obrigação de investigar questões de
relevância social como o abastecimento de água, foi omissa, negligente,
acomodada e, neste sentido, conivente com a desconversação do Palácio dos
Bandeirantes.
Omissão
da imprensa
Duas razões talvez possam
explicar ao menos parte desse comportamento: um deles diz respeito à própria
desorientação da mídia tradicional, que perdeu o rumo com o
impacto/interação/fusão com conteúdos online de natureza apressada e
superficial. Neste sentido, um processo que alguém já chamou de “juniorização”
da imprensa também dá sua contribuição para piorar o que já estava ruim.
Em parte da imprensa, a
arrogância substituiu a competência, a necessidade de investigar antes de
opinar sobre tudo, especialmente sobre o que não se conhece o suficiente. Na
rede digital a situação é, às vezes, exótica e se expressa, por exemplo, em
grafias surpreendentes: a confusão entre sexta, sinônimo de um dia da semana, e
cesta, objeto com que se transporta, por exemplo, compras na feira.
Outro calcanhar da mídia, em
particular dos jornais, é o envolvimento/comprometimento com disputas
político-partidárias de fundo ideológico, intolerante, provinciano e
autoritário. Tão mais paroquial quanto mais pretensamente se procura negar.
A tendência nas redações, e
já faz algum tempo que isso ocorre, é de ascensão via fidelização, submissão a
padrões medíocres, inconsistentes e incompatíveis com o jornalismo de
investigação: a reportagem bem feita, a história bem contada, com todos os ângulos
possíveis de determinada situação. Com isso o jornalismo que se faz neste
momento não apenas cava sob seus próprios pés como dá espaço para que omissões,
de todos os tipos, ocorram. Fala-se e escreve-se sobre o óbvio e quando o óbvio
já está consumado. Não se investiga, informa, denuncia, critica como forma de
evitar o indesejável.
O jornalismo que já
praticamos por aqui não existe mais, daí as surpresas com a sucessão de
escândalos, omissões, negligências e patifarias de todos os estilos. Entre elas
a crise da água e mesmo do fornecimento de energia elétrica.
O jornalismo deixou de ser
crítico, analista, previdente, no sentido de se antecipar a certos fatos, e
passou a sensacionalista. No caso da água, a situação deve ficar ainda mais
difícil do que muita gente de boa fé está disposta a acreditar.
Um encontro, em novembro
passado, reunindo 16 cientistas da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e
Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), de que a imprensa sequer
tomou conhecimento, produziu um documento perturbador, a “Carta de São Paulo”
sobre a crise hídrica do Sudeste. Nessa síntese, pesquisadores de hidrologia e
áreas afins expressam o temor de que a estiagem de 2014 pode ser o início de um
novo ciclo e não uma ocorrência isolada, um mau humor passageiro de São Pedro,
como temos sido convidados a acreditar.
Se for essa a realidade do
futuro imediato ? e neste caso ninguém pode garantir tanto o sim quanto o não ?
a situação pode ficar dramática o suficiente para produzir mudanças profundas
na economia e na vida social do Sudeste, com reflexos em todo o país.
Preocupação
estratégica
O que pode ocorrer não é
coisa de futurismo, mas uma questão de natureza histórica, que só o tempo pode
confirmar. Mas o interessa aqui é que, em termos estratégicos, caso do
abastecimento de água, é preciso preparar-se para o pior, como forma de se
assegurar o melhor.
E isso simplesmente não foi
feito.
Foi neste contexto que o
secretário de Recursos Hídricos, porta-voz do governo e otimista inveterado
quanto à superação da crise, Mauro Arce, foi substituído, num golpe rápido e
sem maiores explicações, por Benedito Braga, ex-presidente da Agência Nacional
de Água (Ana) e presidente do Conselho Nacional de Água.
A mudança ocorreu no final do
ano, em meio às correrias típicas da data. Um profissional na posição de um
amador. E por que isso ocorreu com os fatos já consumados, o que significa
dizer, com a crise já completamente instalada. Essa é uma das perguntas que os
jornais deveriam ter feito.
Também as mudanças na direção
da Sabesp ocorreram sob a pressão de uma tentativa proustiana de recuperar o
tempo perdido com denegações de interesse eleitoral. Antes disso prevaleceram
as prioridades das eleições de outubro. Ainda que, na Sabesp, a longa história
da crise hídrica esteja para ser contada.
Uma
edição especial de Scientific American Brasil,
relativa à crise da água no Sudeste, nas bancas no final de janeiro com o
título de “A Exaustão das Águas”, traz um levantamento amplo e completo dessa
situação, a começar pela “Carta de São Paulo”. O que se pode ler ao longo da
edição é um conjunto de desconfortos com o presente e de enorme e inédita
preocupação com o futuro.
São Paulo deveria, há
décadas, ter se preparado para o desafio do abastecimento de água, estimulando
a reciclagem ou reúso, sensibilizando a população com campanhas educativas e
também aproveitando as águas pluviais, agora a alternativa mais sensata para se
amenizar a crise. A não ser, evidentemente, que as chuvas sejam ainda mais
raras a partir do fim do verão e por isso insuficientes para recuperação dos
reservatórios esvaziados até mesmo do que ficou conhecido como “volume morto”.
Se o pior temor dos
cientistas que produziram a “Carta de São Paulo” se confirmar ? a partir de
mudanças climáticas por trás do aquecimento global, mas também por destruição
da Floresta Amazônica ? teremos um caso em que a realidade supera a ficção.
A destruição da Floresta
Amazônica, talvez seja conveniente acrescentar, não é um desses casos de
romantismo desarticulado, em que um conjunto disparatado de situações é
considerado numa única equação com intenção de corroborar uma hipótese. O
conhecimento climatológico disponível é mais que suficiente para explicar a
formação de nuvens na Amazônia por efeito direto da floresta. O que ocorre em
seguida é que ventos dominantes, confinados pelo paredão dos Andes, transportam
essas nuvens até o Sudeste onde elas se precipitam sob a forma de chuva.
Pesquisadores do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), particularmente o biogeoquímico Antonio
Nobre, estão convencidos de uma conexão direta entre destruição da floresta e
efeito nas chuvas do Sudeste.
Impacto
da destruição de florestas
Mas a destruição das
florestas é um processo que começou com a chegada de Cabral e seus marujos na costa
do que é hoje a Bahia e, desde então, machados e depois motosserras não
descansaram um único dia. Por tudo isso, a iniciativa óbvia, prática e
preventiva de construção de reservatórios para captação de águas de chuva em
todo o Sudeste, em especial na megalópole de São Paulo, é uma iniciativa óbvia
e necessária.
E o Estado deve ser
moralmente solidário com a população nessa iniciativa. Entre outras razões
porque é o responsável legal por uma garantia que não cumpriu e, agora, é tarde
demais para isso. A solução são iniciativas de emergência.
O esforço coletivo para
aproveitamento das águas das chuvas, além de um ato de racionalidade, é também
uma atitude de construção de maior coesão social, inclusive como maneira de
enfrentar irresponsabilidades governamentais nas diferentes instâncias:
municipal, estadual e também federal. Além disso, o que sobra são as passeatas
e os protestos de sempre, que tendem a perder força e representatividade. E
isso não apenas no caso da água, porque em relação à energia elétrica, a
situação não é muito diferente.
A cada ano, burocraticamente,
como se não fôssemos um país majoritariamente tropical, o governo federal
decreta o “horário de verão”, com a justificativa de economia de energia. Mas,
o sacrifício dos que saem da cama ainda com a noite escura, entre eles
trabalhadores que vivem nas periferias e dependem de transportes abarrotados,
não se justifica.
Quase sempre, na primeira
trovoada, em inúmeros bairros, um transformador explode com a potência de uma
banana de dinamite e a energia vai embora. É o que ocorre, por exemplo, no
Sumarezinho, bairro paulistano tombado pelo patrimônio histórico, onde as interrupções
no fornecimento de energia são, a cada ano, mais frequentes e duradouras. As
luzes se apagam e o trabalho que deve ser feito na frente de um computador fica
paralisado por horas a fio.
Quem paga por essas perdas?
Ninguém paga. Aparentemente, ninguém ter qualquer coisa a ver com isso. Mas, no
momento de reajuste de tarifas, uma multidão de interessados se manifesta com
voz na mídia.
Exposição
de doentes e idosos
Isso sem levar em conta as
emergências em hospitais, moradores de edifícios com idade avançada que devem
ser transportados de forma improvisada por parentes e vizinhos. Quando não
ficam aprisionados em elevadores.
A justificativa de sempre é a
queda de árvores. Mas nem sempre isso é real. O que ocorre de fato, em muitos
casos, é uma infraestrutura sucateada, incapaz de dar conta do que se espera
que possa dar conta.
Uma maneira prática e
inteligente de se amenizar a crise de energia que agita os burocratas do
governo é estimular a produção doméstica de energia, a partir de placas
fotovoltaicas instaladas em residências.
Utopia? Na cidade de Phoenix,
no Arizona (EUA), a oferta de energia elétrica produzida em domicílio já abriu
uma guerra com as companhias tradicionais de distribuição. Em Phoenix há sobra
de energia e os produtores domésticos descarregam o excesso na rede das
companhias de distribuição, gerando atritos e insatisfações mútuas.
Por
aqui, nem isso ocorre. E não ocorre por falta de iniciativa oficial, no sentido
de se obter produção “em domicílio” de energia elétrica. Neste caso, os lobbies de produtoras e distribuidoras de
energia não estão nem um pouco interessados em estratégias desse tipo. E os
jornais são os veículos de divulgação desses lobbies. Nenhum
questionamento, nenhuma postura crítica, nenhuma sugestão de mudança, de inovação
ou do que quer que seja para alterar a situação.
Na ausência de reação
crítica, o resultado é a construção de seguidas usinas hidrelétricas afetando
terras indígenas, áreas de vida animal e vegetal únicas, investimentos pesados
com encargos sociais e perturbações como a que ocorre, por exemplo, com a
hidrelétrica de Belo Monte, no sul do Pará. Sem falar nos custos extras por
acionamento de termelétricas, fontes altamente poluidoras e por isso mesmo
indesejáveis de oferta de energia.
Mas nem assim estamos seguros
em relação ao abastecimento. O Brasil dispõe do maior estoque de água doce do
planeta, algo em torno de 12% e 14% de toda a água da Terra. Mas, com tudo
isso, ainda nos ressentimos de água potável e de energia estável.
Um país atrasado, segundo o
filósofo da ciência Mario Bunge, é um país de mentalidade atrasada. Se isso de
fato for verdade, talvez as mudanças devam começar por cada um. E a construção
de reservatórios para águas pluviais, com exigência de contrapartida do
governo, poderia ser um primeiro passo.
Ulisses Capozzoli -
jornalista, editor-chefe da Scientific
American Brasil
Fonte: site Observatório da Imprensa