O que é vida? IA pode ser o começo de um novo salto na evolução
humana
Publicado no fim do mês passado, o artigo AI Is Life, escrito pela
astrobióloga Sara Walker, propõe um novo olhar sobre a inteligência
artificial ou, na verdade, sobre tecnologia enquanto uma manifestação de vida.
Com isso, ela não tem a intenção de dizer que uma IA é um organismo vivo, mas,
sim, que ela é um desdobramento da nossa existência enquanto humanos (da mesma
forma que nós somos desdobramentos de outros seres e eventos planetários).
O que Sara propõe é justamente isso: entender a vida enquanto
uma linhagem, não um indivíduo.
É correto dizer que a humanidade evoluiu, mas
não que um humano pode, sozinho, evoluir biologicamente, uma vez que esse tipo
de processo ocorre de maneira muito mais lenta e geracional.
Portanto, o
próprio conceito de "elo perdido", isto é, o momento em que uma
espécie (no caso, do hominídeo para o humano) transita para outra, não é sobre
um indivíduo em específico, mas sim um processo e gerações de indivíduos que
podem ser mapeados a partir de fósseis de transição —registros desse processo,
mas não o marco decisivo.
Acontece que, assim como já discutido no âmbito da filosofia transumanista,
a evolução da espécie humana não precisa mais ser pensada em parâmetros
darwinianos, mas sim tecnológicos e financeiros.
Podemos acelerar esse processo
a partir de novas tecnologias que desenvolvemos em laboratórios e que cada vez
mais demoram menos tempo para serem superadas (se seguirmos a lógica da Lei de
Moore).
Como apontado por Sara, enquanto vários séculos se passam até um
organismo desenvolver alguma característica que permita sua sobrevivência (e,
portanto, evolução), no âmbito da tecnologia humana, esse processo se dá muito
mais rápido, mas também a partir de uma lógica de seleção —talvez não do
mais apto, mas por outros motivos mais "relevantes" como retorno
financeiro.
É por causa desse tipo de aceleramento e desvio no processo de
escolha evolutiva que alguns expoentes tecnológicos acreditam que a IA pode
apresentar um risco existencial.
Curiosamente, risco existencial é também uma pauta levantada por
um movimento conhecido como "longtermism" que prioriza o desenvolvimento
de tecnologias, como a IA, de modo a evitar nossa extinção.
Ao fim e ao cabo,
tudo isso não significa nada em um contexto cosmológico. Faz parte da história
do planeta Terra e da vida passar por eras de extinção.
O problema é que nós,
humanos, do alto de nossa consciência, não conseguimos lidar com a
possibilidade de que nós, enquanto espécie, podemos ser extintos.
Como já mencionei, o transumanismo pode ser, justamente, uma via
de evitar esse cenário, como propôs o filósofo Hans Jonas ao sugerir que o
maior dos males não é o assassinato, mas sim a extinção de uma espécie.
Por
outro lado, o transumanismo também pode ser o catalisador da nossa extinção —e
tudo bem (!).
Sara cita James Lovelock ao trazer a Hipótese de Gaia, mas, como
já comentado aqui em outra oportunidade, o próprio cientista já havia proposto
que a evolução da espécie humana pode estar na tecnologia e, eventualmente, na
nossa extinção – e tudo bem.
Sara cita James Lovelock ao trazer a Hipótese de Gaia, mas, como
já comentado aqui em outra oportunidade, o próprio cientista já havia proposto
que a evolução da espécie humana pode estar na tecnologia e, eventualmente, na
nossa extinção.
Porém, quando falamos de extinção, podemos afirmar que os
dinossauros foram extintos, mas sem eles não teríamos as aves como as
conhecemos hoje —ponto também levantado por Sara.
Isto é, dinossauros, enquanto
espécie, de fato, foram extintos, mas seu DNA e a informação ali contida
continua em movimento de iteração evolutiva.
Para Sara, isso tudo nos faz crer que estamos em um importante
ponto na história, mas não em seu ápice, quando pensamos que a tecnologia que
estamos desenvolvendo pode ser o pontapé para um novo salto evolucionário e de
uma atualização da maneira como entendemos a vida.
Sara menciona, por exemplo,
como as definições canônicas do que seria a vida são falhas por se concentrarem
em uma lógica de indivíduo e não de linhagens evolutivas:
Invariavelmente, algo é incluído ou excluído da categoria dos
'vivos' e que provavelmente não deveria ter sido.
Se você traçar uma linha
entre [organismos] que se autorreproduzem ou são autossustentável, vírus e
parasitas são excluídos (vírus são frequentemente citados como casos limiares
exatamente por esse motivo).
Se você traçar uma linha baseada no consumo de
energia, o fogo pode razoavelmente se enquadrar.
Outras definições enfrentam
problemas similares.
Uma [definição] popular desenvolvida por um grupo de
pesquisadores da Nasa [afirma que] 'vida é um sistema químico autossustentável
capaz de evolução darwiniana' parece, a princípio, inócua.
Mas, se analisarmos
melhor, ela contém as mesmas falhas. Apenas populações evoluem, não indivíduos.
E isso levanta uma outra questão em vez de dar uma resposta: toda vida deve ser
baseada em reações químicas para poder existir?
Sara, no entanto, não quer expandir o conceito de vida a ponto
de beirarmos ao animismo.
O que ela propõe é algo parecido com uma discussão
que ocorre no âmbito da astrobiologia, que é a de ampliar o conceito de vida
para além daquela baseada em carbono.
Esse raciocínio é também contemplado no
Paradoxo de Fermi, que propõe que certas civilizações podem ter alcançado
níveis mais avançados de evolução de suas espécies ao atingir um ponto
tecnológico e não mais biológico.
Esse poderia ser também o nosso destino. No
momento, Sara diz que é possível afirmar que nossas tecnologias não substituem
um ser vivo, mas que elas são, conjuntamente, manifestações da vida.
Só que entender o que realmente está acontecendo é muito difícil
para nossa mente justamente por estarmos falando de um processo evolutivo maior
que a duração de nossa vida enquanto humanos.
De maneira geral, temos
dificuldade em aceitar que certas coisas sejam possíveis quando as projetamos
para o futuro, esquecendo que muito do que nos é factual e óbvio hoje poderia
ser visto como absurdo séculos antes.
Porém, isso não significa que temos a
capacidade de prever o que pode vir a ser.
Dentro do campo dos estudos dos
futuros (futures studies), por exemplo, já é de senso comum a noção de que é
impossível prever o futuro e ainda mais difícil de conseguir delineá-lo
conforme ele se distancia em tempo.
A Lei de Moore, desse ponto de vista, parece menos uma lei
factual e aplicável ao universo, como a lei da gravidade, e mais uma
manifestação da nossa ansiedade em assistir a eventos cosmológicos em nosso
curto prazo de validade —daí também o esforço para se alcançar a extensão
radical da vida ou mesmo a imortalidade.
Enquanto isso não vem, o que nos resta
é usar a criatividade e a arte para tentar esboçar possíveis desdobramentos que
nos são completamente abstratos e inalcançáveis enquanto indivíduos, mas talvez
não enquanto espécie ou linha evolutiva.
Confrontar a nossa própria morte é um processo difícil, mas,
segundo alguns autores, pode ter sido crucial para o desenvolvimento da nossa
consciência.
De modo semelhante, talvez confrontar e absorver o fato da nossa
própria extinção enquanto espécie pode ser crucial para o desenvolvimento de
nossa próxima fase evolutiva.
Apesar de essa ideia soar como aqueles memes em
que dinossauros ficam felizes achando que o meteoro que os extinguiria era uma
estrela cadente, a longo prazo, essa é a história da (nossa) vida: plantar
árvores que darão frutos somente quando já estamos há muito tempo mortos.
Tanto que é de um raciocínio similar que nasce a ideia do
Basilisco de Roko: a hipótese de que inevitavelmente chegaremos a um ponto no
qual existirá uma superinteligência artificial, a diferença é que papel nós
temos em seu surgimento.
Como era de se esperar, Elon Musk é um dos devotos
dessa hipótese ao mesmo tempo em que também é uma voz que pede pela interrupção
no desenvolvimento da IA para, logo depois, anunciar um novo projeto de IA no
Twitter.
Mas assim como a evolução não se dá a partir de um único indivíduo,
Musk é só um personagem que cristaliza esse sintoma compartilhado na nossa
sociedade.
O que Sara sugere em seu artigo, aliás, é justamente como a
evolução é um processo complexo e hierárquico que se dá entre transições da
vida a partir de proporções: "do molecular ao celular, do multicelular ao
societário, do multissocietário ao planetário".
Portanto, o
"perigo" não está necessariamente no que certos líderes falam ou
fazem, mas sim nas massas que ecoam essas ideias e as colocam em prática.
Líderes morrem, afinal, são humanos, mas suas ideias prosperam assim como as
evoluções biológicas e as iterações tecnológicas que criamos.
O desafio é conseguir enxergar esses pontos a um prazo muito
mais longo do que a nossa própria existência, sendo que, nesse ínterim, temos
contas a pagar e exercício para fazer de modo que nossos corpos possam aguentar
mais capítulos dessa novela.
LÍDIA ZUIN - jornalista
e futuróloga, mestre em semiótica e doutora em artes visuais pela Unicamp.