Indústria do golpe criou 'call center do inferno'
Com
acesso fácil a dados dos usuários na internet, golpistas se especializam em
tirar dinheiro dos cidadãos.
É preciso ser claro e sem rodeios: o sistema de
identificação utilizado no Brasil colapsou.
Em vez de servir para provar a
identidade de uma pessoa, esse sistema é hoje uma chaga aberta que está sendo
explorada por criminosos, por meio de golpes cada vez mais sofisticados.
RG, CPF, endereço, nome do pai e da mãe, número do
celular e vários outros dados pessoais que o país utiliza como identificação
são hoje ferramentas para extorsões, golpes, cadastros ilegítimos e assim por
diante.
A razão para isso é uma só: todos os dados de identificação de praticamente todas as
pessoas do país vazaram. Esses dados estão hoje livremente
disponíveis online ao alcance de golpistas e organizações criminosas.
Uma verdadeira indústria surgiu para explorar essas
informações.
Além do famoso golpe do WhatsApp, que manda mensagem para o pai ou
a mãe de uma pessoa alegando emergência e pedindo uma transferência de dinheiro
imediata, a cada dia surge um golpe novo no país.
Por exemplo, o golpe do falso call center.
O criminoso identifica facilmente o
banco em que a pessoa tem conta. Liga então para ela a partir de um número
forjado ("spoofed") que corresponde exatamente ao número do banco.
A
pessoa atende e ouve uma voz 100% profissional, idêntica a dos call centers.
O criminoso então repassa alguns dados da pessoa
para ela confirmar.
Na sequência, alega que houve um problema de segurança com
a conta e que vai transferir para a área de segurança do banco.
A ligação é
transferida para outra pessoa, também com voz e postura 100% profissional.
A segunda pessoa então começa a passar
"orientações" para a vítima.
Nesse processo, muitas vezes consegue
extrair as senhas e até mesmo convencê-la a fazer transferências bancárias de
"teste" para outras contas.
Quem é vítima desse golpe fica atônito:
como podem saber todos os meus dados?
Como podem ter me ligado a partir do
telefone do banco em que tenho conta?
Ações infelizmente fáceis de serem feitas
no contexto atual.
Em outras palavras, se você ainda não caiu em
nenhum golpe da internet ou não conhece ninguém que caiu, pode ter certeza de
que sua hora vai chegar.
A indústria dos golpes baseada nos vazamentos de dados
cada dia cria um mecanismo novo de extrair dinheiro e informações das vítimas.
Essa indústria se profissionalizou, possui capital, funcionários e protocolos
de treinamento.
É altamente inovadora. É como se fosse um serviço de
atendimento ao consumidor do mundo ao avesso, um call center do inferno.
O que fazer nesse contexto? Na minha opinião há
duas coisas a serem feitas. A primeira é indenizar as vítimas dos golpes apurando
responsabilidades.
No âmbito da Comissão de Tecnologia da OAB-SP estamos
apurando responsabilidades para ingressar com medidas cabíveis.
A segunda coisa é reinventar completamente o
sistema de identificação do país. O que está aí faliu, ele virou problema e não
solução.
Idealmente, o caminho deveria ser criar uma identidade digital
verdadeira no país, certificada e reconfirmada de forma relacional e permanente
na medida que a pessoa vai vivendo sua vida.
O sistema de identificação
brasileiro precisa de um reboot. Até lá prepare-se para golpes sem fim.
RONALDO LEMOS - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de
Janeiro.