A trapaça é um esporte nacional
O
que se sabe e o que falta saber sobre o brasileiríssimo 'picareta'.
Que a picaretagem é um esporte nacional valorizado,
talvez mais que o futebol, basta olhar em volta para comprovar.
Das pessoas em posição de poder que você avista de onde está, quantas são
rematados picaretas, do cabo de madeira às duas pontas de ferro? No entanto, há
um ponto cego na história dessa palavra.
Não falo da picareta-instrumento, substantivo
feminino da língua portuguesa, mas do substantivo de dois gêneros,
brasileirismo que significa “pessoa aproveitadora, que utiliza meios
condenáveis para obter o que deseja” (Houaiss). Definição insuficiente, aliás.
Prefiro a longa formulação do dicionário da
Academia das Ciências de Lisboa (o que é curioso, tratando-se de palavra brasileira):
“Pessoa que engana os outros, que se faz passar por aquilo que não é, que finge
que sabe de um assunto quando na realidade não o domina; pessoa que procura
tirar vantagens, usando meios pouco lícitos”.
Agora sim —cabe inteiro aí o picareta, praga de
ambientes variados, mas especialmente à vontade na esfera oficial de um “Brasil
imbecil e burocrático”.
As palavras entre aspas são do escritor Lima Barreto (1881-1922), que criou um dos
maiores picaretas da nossa literatura no conto “O Homem que Sabia Javanês”.
Cheio de dívidas, um sujeito chamado Castelo
resolve tomar dinheiro de um barão meio caduco fingindo ser mestre na língua
malaio-polinésia da ilha de Java, da qual nada sabe.
É tão grande a
vulnerabilidade nacional ao picareta que Castelo acaba encastelado na posição
de medalhão da República, glória cívica, com direito a belo emprego público e
convite para almoçar com o presidente. Soa familiar?
A importância da picaretagem em nosso meio torna mais estranha a
lacuna acerca da palavra nos estudos etimológicos.
Ninguém sabe ao certo como
da picareta se fez o picareta, quer dizer, como do sentido de instrumento
brotou o de pilantra.
Conheço só um estudioso que tenta dar conta disso, e não me
parece uma tentativa muito boa. Silveira Bueno (1898-1989) acredita tratar-se
de metáfora simples, baseada na ideia de que o picareta “em tudo mete a cara
para cavar dinheiro, emprego”.
Seria, assim, um sinônimo de cavador, que tem
entre suas acepções a de trambiqueiro.
Que a picareta acabou tendo emprego metafórico parece certo, mas
acho estranho que não se considere a provável influência de um termo que, hoje
de uso raro, já circulou com sentido muito parecido: pícaro.
Palavra nascida no espanhol, a princípio pícaro queria dizer
“sujeito ruim e de má vida”.
Acabou por nomear um tipo de pessoa ardilosa que,
pobre e sem recursos, usa de esperteza para tirar sua sobrevivência da burla,
do golpe, da perna passada em gente de posição social superior.
O pícaro desembarcou no português no início do século 17 e, como
na língua de origem, provou-se influente a ponto de nomear um gênero literário
de sucesso —o picaresco, centrado nas aventuras cômicas dos pícaros.
A semelhança sonora entre o pícaro e a picareta pode não ser
coincidência.
O catalão Joan Corominas (1905-1997) considera provável que o
nome do trapaceiro, como o do instrumento, venha do verbo “picar” —ação
executada por gente de sua classe, como auxiliares de cozinha.
Coincidência ou mais do que isso no caso do instrumento, o fato
é que as correspondências de forma e sentido entre o pícaro e o picareta tornam
essa associação, no mínimo, uma hipótese de peso para a origem do
brasileirismo.
SERGIO RODRIGUES - escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a
Língua Brasileira”.