Filhos da luz e filhos das
trevas
Em rede social, governo de Israel reedita lógica sectária dos
manuscritos do mar Morto.
Fiquei abismado, alguns dias
atrás, ao ver uma postagem do perfil oficial do primeiro-ministro de Israel na rede social outrora conhecida
como Twitter.
A frase, apagada logo depois, dizia:
"Esta é uma guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas".
Parece só um exercício banal de
maniqueísmo, certo?
Não quando se considera que a expressão reproduz, palavra
por palavra, o título de um dos documentos mais famosos do judaísmo antigo a
chegar até nós, o chamado Pergaminho da Guerra.
É muito pouco provável que
justamente esse manuscrito tenha sido escolhido como inspiração por acaso —ou
que, no fim das contas, a frase tenha sido deletada.
O Pergaminho da Guerra, ou
"A Guerra dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas", é um dos
chamados manuscritos do mar Morto, encontrados em
cavernas da região de Qumran, na Cisjordânia, e compostos ao longo de um
período que provavelmente vai do século 3º a.C. ao 1º a.C.
Há um debate acadêmico
gigantesco a respeito de quem vivia em Qumran e quem teriam sido os
responsáveis por escrever e armazenar os manuscritos.
Muitos deles são apenas
cópias muito antigas da maioria dos livros da Bíblia hebraica (ou "Antigo
Testamento", para os cristãos).
Seja como for, o Pergaminho da Guerra é um
dos textos que parecem dar apoio à ideia de que a comunidade de Qumran era um
grupo judaico sectário, que enxergava como inimigos não apenas os pagãos que
tinham se assenhorado de sua terra como também outros judeus, os de fora da
comunidade.
Trata-se de um manual de
combate, com detalhes sobre o que escrever nas trombetas e estandartes das
tropas, sobre os escudos, lanças e espadas de cada combatente.
Mas os inimigos
citados pelo texto, embora incluam adversários históricos do povo de Israel
—como os filisteus e os assírios— são definidos coletivamente como "o
exército de Belial", ou seja, do Demônio.
O exército dos "filhos da
luz" combate ao lado de anjos e, no fim das contas, por intervenção do
"Deus de Israel", chega a um triunfo no qual todos os seus inimigos
são destruídos para sempre.
Essa visão apocalíptica
provavelmente é o resultado do trauma nacional produzido por duas ocupações
estrangeiras seguidas.
Primeiro veio a perseguição ao judaísmo organizada pelo
reino greco-sírio de Antíoco Epífanes; depois, a chegada do Império Romano, cujas legiões tomaram Jerusalém e profanaram o Templo algumas
décadas antes do nascimento de Cristo.
A grande ironia histórica aqui é
que a crença num confronto militar-místico definitivo entre o grupo sectário e
o resto do mundo caiu por terra justamente quando os judeus se revoltaram
contra Roma e foram derrotados (66-73 d.C.).
O judaísmo, reconstruído depois
desse desastre e de uma segunda revolta malsucedida contra os romanos,
abandonou, em larga medida, a ideia de que o reino de Deus na terra poderia se
concretizar por meio da força das armas.
Retomar essa lógica num mundo em
que o potencial destrutivo da nossa espécie pareceria quase divino aos olhos de
judeus e romanos de 2.000 anos atrás não tem nada de auspicioso.
Ademais, os
sectários de Qumran não faziam diferença entre o inimigo externo e os judeus
cujas ideias teológicas eram diferentes das deles.
Por mais absurdos e
desumanos que tenham sido os ataques terroristas do Hamas, abraçar essa
maneira de pensar só pode ser descrito como jogar gasolina no fogo.
REINALDO JOSÉ LOPES - jornalista especializado em biologia e
arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".