O declínio do terceiro lugar
Em crise, ele é o espaço onde as diferenças são toleradas em nome do
convívio.
Uma das tragédias contemporâneas
é o chamado "declínio do terceiro lugar". A ideia é simples e
poderosa.
A sociedade é constituída de lugares de convívio humano. O primeiro
lugar é a nossa casa.
O segundo é o trabalho.
Já o terceiro lugar é o conjunto de
espaços privados ou públicos em que encontramos pessoas com os quais não
necessariamente temos vínculos: cafés, clubes, bibliotecas, parques,
livrarias, igrejas, praças e assim por diante.
O importante é que seja um lugar
aberto em que as pessoas possam se conectar entre si, com situações
desconhecidas ou imprevisíveis, ou ainda, unidas por interesses ou atividades
compartilhadas.
O terceiro lugar é onde ocorre
uma espécie de laboratório cívico acidental, onde as diferenças são toleradas
em nome do convívio.
A ideia apareceu no livro do sociólogo Ray Oldenburg chamado "The Great
Good Place", publicado em 1989 (Oldenburg morreu no fim de 2022).
Na obra,
ele enfatiza que os terceiros lugares são essenciais para a criação de um senso
de comunidade, para a construção de uma
Só que em 1989 Oldenburg não podia prever as
complexidades do declínio atual do terceiro lugar, incluindo o papel da tecnologia nas nossas vidas.
Apesar de ter potencial de
formação de comunidades virtuais (a ponto de ser chamada por alguns de "o
quarto lugar"), a maior parte dos produtos tecnológicos acaba gerando mais
individualismo.
É só pensar nos óculos de realidade virtual da Apple, o Vision Pro. O aparelho tem potencial de isolar as
pessoas dentro das próprias casas.
Se o celular é uma força de afastamento das
pessoas dentro de casa, imagine um computador colocado na cara de cada um.
Mas a tecnologia não é o único fator. Parte da crise do terceiro
lugar é também de mudanças estruturais no primeiro e segundo lugares.
Especialmente na pandemia a casa passou a se tornar para uma parcela da
população também um lugar de trabalho, o que tirou parte das pessoas das ruas da
cidade.
Além disso, a facilidade de comprar online está esvaziando centros
urbanos.
Uma das experiências mais aterrorizantes é assistir aos vídeos
do documentarista Dan Bell no YouTube. Sua série "Dead Mall"
(Shoppings Mortos) é pior que muitos filmes de horror.
Mostra shoppings
gigantescos fechados, muitos deles novíssimos ou recém-inaugurados. Bell
passeia pelo interior desses espaços, totalmente vazios, funcionando como um
mau presságio.
No Brasil, o desafio dos terceiros lugares é ainda maior. Com
uma sociedade dividida por múltiplos fatores, econômicos e sociais, vivemos
cheios de terceiros lugares falsos.
Um terceiro lugar verdadeiro precisa ser
neutro (ninguém tem a obrigação de estar lá), nivelador (status não determina a
entrada), a conversa é a chave do convívio (e não o comércio), é aberto a
todos, tem raízes em comunidades locais, e assim por diante.
É claro que o Brasil tem vivido mudanças nas dinâmicas sociais
nos últimos anos, como o renascimento do carnaval de rua ou o crescimento das
igrejas neopentecostais.
Em um contexto em que o individualismo puxado pela
tecnologia prevalece, o Brasil poderia assumir um papel de proteção e
reinvenção dos 3º lugares contra o desaparecimento ou a cooptação.
Essa me
parece uma ambição (ou utopia) saudável.
RONALDO LEMOS -
advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.