Conteúdo feito por IA venceu: a internet não é mais
humana
- Empresas de IA passaram a querer 'engajamento' para aumentar o uso
da plataforma, como redes sociais
- Setor aposta em IAs que atuem como 'namorada', 'terapeuta', 'amiga'
para gerar dependências emocionais
Há
uma virada histórica em curso. Pela primeira vez, o número de artigos escritos
por inteligência artificial superou os textos
produzidos por humanos na internet. Em 2025, 53,5% do conteúdo textual da web
passou a ser gerado por máquinas.
Vale notar que textos são só a ponta da
lança. Áudio e vídeo estão indo na mesma
direção.
Em
paralelo, há uma mudança rápida no modelo de negócios das empresas de
inteligência artificial.
A IA até agora era vendida como uma ferramenta a ser
aplicada em tarefas práticas. Não mais. As empresas de IA passaram a querer
"engajamento", isto é, aumentar o tempo de
uso da plataforma.
Tudo para reter a atenção do usuário ao máximo.
Soa
familiar? Sim. Esse é o modelo de negócio das redes sociais. Só que agora
movido por IA. Por exemplo, a OpenAI anunciou que vai permitir
conversas sexuais da sua IA com adultos.
Lançou também o Sora, aplicativo
focado em vídeos curtos, como o TikTok, só que produzidos com IA.
As
empresas do setor como um todo estão apostando em IAs que atuem como
"companheira", "terapeuta", "amiga",
"namorada" e outros antropomorfismos capazes de gerar dependências
emocionais entre humanos e máquinas.
Se a expressão dos últimos anos foi
"capitalismo de vigilância", a dos próximos pode ser
"capitalismo de dependência".
Isso
porque a IA ocupa uma posição privilegiada para explorar vulnerabilidades
humanas: solidão, luto, tristeza, frustração. Especialmente entre os mais
jovens.
Em um mundo com pessoas cada vez mais solitárias e atomizadas, a IA
estará sempre à espreita. Alguém que perde um parente próximo, tem um dissabor
profissional, separa-se do companheiro, pode se sentir tentada a "se
abrir" com a IA.
É um ato mais fácil (e "sem fricção") do que
buscar conversar com outro ser humano.
A
relação emocional das IAs com seres humanos é o triunfo do behaviorismo. Ao
hiperfocar só no que pode ser observado externamente (ações, estímulos,
respostas, palavras) e desincumbir-se dos processos mentais internos e
verdadeiros, a IA assume um lugar de domínio estrutural.
A partir da capacidade
de testar seu aguilhão em centenas de milhões de pessoas, captando sinais
objetivos e verificáveis e respondendo a eles em tempo real, converte-se em uma
ferramenta de condicionamento sem precedentes.
Há exatos quatro anos escrevi na Folha o
artigo sobre a "grande ruptura" ("Como as redes digitais demolem a cultura e ampliam a
ansiedade").
Nele falava de como as mídias vinham sendo
"instrumentalizadas para produzir manipulação emocional do que para
comunicar". E como "a informação ou conteúdo textual, quando
presentes, servem apenas de veículo para transportar efeitos emocionais".
Estamos agora vivendo a grande ruptura com esteroides.
Conversando com o amigo Hermano Vianna sobre tudo
isso, ele me falou: "A internet precisa de uma Revolução Francesa –estamos
numa nova Bastilha–, é preciso reconstruir as praças públicas, os 'Commons', os
rocios. Seria um bom projeto europeu".
Seu comentário é apropriado. Nesta terça-feira (28)
vou jantar com Emmanuel Macron no Palácio Eliseu. Vou propor exatamente isso.
Talvez ele seja a pessoa certa para ouvir essa ideia.
RONALDO
LEMOS -
advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro