MARIO SERGIO CORTELLA DIZ QUE AS NOVAS GERAÇÕES PRECISAM
ENTENDER QUE ENTRE A VONTADE E O SUCESSO EXISTE UM CAMINHO CHEIO DE COISAS
POUCO
PRAZEROSAS
[A entrevista foi
feita no dia 22 de agosto de 2014]
O
filósofo Mario Sergio Cortella é conhecido por sua experiência na área de
educação, mas parece capaz de filosofar sobre tudo. Nesta entrevista de menos
de uma hora, ele foi da sala de aula à Copa, passando por tecnologia,
democracia e mundo corporativo.
Cortella
é professor há 40 anos e, na juventude, tentou por três a vida no Monastério.
Foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo, trabalhou ao lado de Paulo
Freire, uma das figuras mais importantes da educação brasileira, e escreveu
mais de 15 livros. Uma de suas aulas colocadas no YouTube - "Você sabe com quem está falando?" - tem
quase 800 mil visualizações.
Na
conversa a seguir, ele chama a atenção para um "desvio de formação"
dos jovens, que não foram ensinados a batalhar pelo que desejam. Ao mesmo
tempo, afirma que essa geração tem várias características que precisam ser
valorizadas. Cortella também dá um alerta sobre a nossa falta de tempo para
pensar sobre nós mesmos: "algumas coisas na vida é melhor começar cedo
antes que seja tarde". A dica, que ele repetiu algumas vezes durante a
entrevista, é "parar, olhar e escutar". Já fez o seu minuto de
silêncio hoje?
Debate-se muito no mercado de trabalho sobre essa geração que
está encarando agora seus primeiros empregos, que suas expectativas não
condizem com o que o mundo corporativo tem a oferecer hoje, e que eles não se
encontram.
Há duas coisas aí. Primeiro: de qual jovem estamos falando? Porque aquele que
não se encontra é aquele que tem escolha. Quem não tem escolha tem que se
encontrar, senão não sobrevive. A mesma coisa vale para o dilema de mulheres
que não sabem se trabalham ou cuidam dos filhos. Essa é uma opção que só parte
da população tem. Boa parte das mulheres ou trabalha ou morre, só isso. De
maneira geral, aquela que tem o dilema é aquela que contrata outra mulher para
cuidar de seus filhos, para que possa trabalhar enquanto pensa se trabalha ou
cuida dos filhos.
Mas
para quem tem escolha, nas grandes organizações hoje há uma dificuldade de
lidar com essa geração. Porque esse jovem com menos de 30 anos tem grandes
belezas e capacidades, como senso de urgência, mobilidade, instantaneidade,
simultaneidade, velocidade. Mas ele não tem algumas coisas que é necessário
trabalhar: paciência, noção de hierarquia e compromisso com resultado e meta.
Por uma razão: essa classe média jovem tem um desvio de formação que é
confundir desejos com direitos. Isto é, eu quero, portanto você tem que me dar.
É um
problema de criação?
Claro, é um problema de formação dentro da família. Desse ponto de vista, uma
parcela deles acha que, dentro de uma empresa, se eu sou o chefe é como se eu
fosse pai ou mãe, ou seja, eu tenho que prover as condições, e isso não
acontece. Portanto, retirou-se da formação de uma parcela dessa geração a ideia
de esforço. Ao fazê-lo, criou-se uma condição muito malévola, que é supor que
as coisas tem que ser marcadas pela ideia de prazer. E por isso há um hedonismo
hoje muito forte.
Um
jovem diz: eu quero fazer o que eu gosto. Eu também. Só um imbecil gostaria de
fazer o que não gosta. Todo mundo gosta de fazer o que gosta. No entanto, para
fazer o que gosta é preciso que dê passos não tão agradáveis no cotidiano. Eu
gosto demais de dar aula, faço isso há 40 anos, mas não gosto de corrigir
prova, não conheço ninguém que goste. Mas eu não posso não corrigir, porque se
eu não corrijo não tenho visão do como os alunos estão aprendendo e de como eu
estou ensinando. Pois bem, qualquer um sabe que para obter prazer em algo é
preciso algumas coisas que não são, no caminho, satisfatórias e prazerosas. Só
que essa geração atual foi criada sem esse tipo de transição entre o desejo e o
fato, entre a vontade e o sucesso, o anseio e a satisfação. Tem menino de 20
anos de idade que nunca arrumou cama, lavou louça.
O que a empresa pode fazer?
Elas precisam lidar com esse percurso de modo a formar as pessoas dessa geração
com compromisso, metas e prazos, mas sem perder o que ela tem de mais inovador.
Isto é, não só a familiaridade com o digital, mas o senso de urgência,
mobilidade, inovação. Isso é uma força vital, altamente contributiva no mundo
das empresas. Não posso em um negócio não ter gente que queira viver algo que é
novo. Mas também não posso aceitar que ele ache que a vida só funcione com o novo.
Você pode desprezar essa geração em nome daquilo que nela é um desvio, o que
seria uma tolice imensa, ou pode aproveitar o que ela tem e procurar formá-la
na direção daquilo que a fará crescer.
Há outra questão latente nas empresas: elas têm abusado da tecnologia
e, muitas aproveitam as novas ferramentas, para exigir que seus funcionários
fiquem disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana. Como lidar com isso?
A tecnologia não pode ser nossa senhora, tem que ser nossa serva. Sempre que
algo que é do nosso uso nos possui, isto é, domina o nosso cotidiano, esgota
nosso tempo, devora nossa condição de convivência, existe algum tipo de
malefício. A recusa da tecnologia é tola, a adoração da tecnologia também é.
Quando a empresa exagera nesse polo obtém vantagem por tempo limitado. Ela
esgota de tal maneira seus empregados que depois de um tempo eles não conseguem
mais lidar com isso. As pessoas começam a não render mais, se desinteressam,
vão embora.
E na vida pessoal, as pessoas percebem o quanto a tecnologia as
consome?
Elas começam a perceber aos poucos porque começam a argumentar que estão sem
tempo. Esse estar sem tempo é muito sério. Significa “não consigo mais ficar
comigo, tenho que viver em voz alta”. Uma das coisas que colaboram para isso é
a ausência de energia. De vez em quando acaba a eletricidade e as pessoas tem
que olhar-se. Ou quando a pessoa está fazendo uma viagem de avião, ela tem que
ficar quieta. São coisas que vão induzindo um pouco do silêncio.
Até
na área de educação escolar estamos tendo que reordenar o modo como a gente
acolhe as crianças de manhã. Vêm com transporte até a escola ouvindo musica
alta no fone, chegam em estado de tensão. É preciso acalmá-las, não basta
colocar numa sala, mandar sentar e abrir o livro na página 36. É preciso antes
diminuir a luminosidade da sala, colocar uma música mais relaxante e sossegar
um pouco. Porque se não acalmar há um desespero contínuo.
Como a gente coloca um pouquinho mais desse silêncio, desse
tempo, em nosso dia?
Se for em relação às empresas, algumas estão criando esse tempo. Colocam na
jornada de trabalho momentos de reflexão, meditação ou espaço de repouso após
almoço. O que leva o funcionário a ter um rendimento e um bem-estar maior.
Quanto
ao indivíduo, ou ele cria esses tempos – pare, olhe e escute - ou vai viver de
maneira automática, robótica, e conseguirá em breve um estresse. O que pode
gerar a adesão ao consumo exagerado de medicamentos e drogas, legais ou
ilegais. Uma obsessão por tentar ficar em estado de não sobriedade. Tem uma
musica antiga que diz: “não posso parar, se eu paro eu penso, se eu penso eu
choro”. Portanto, é necessário que as pessoas criem seus tempos de
recolhimento. Não de meditação e sofrimento. Mas para pensar: por que faço o
que faço? Por que deixo de fazer? Por que faço do jeito que faço? Por que não
faço como deveria? Isso é meditação. É reflexão. Senão uma hora a pressão
é insuportável. Algumas coisas na vida é melhor começar cedo antes que seja
tarde.
E essa questão da família, da criação? Estamos no caminho certo?
Não, de maneira alguma. Vou lembrar algo óbvio: trabalho de parto não termina
na maternidade. Chama trabalho porque ter alguém exige responsabilidade.
Algumas pessoas escapam hoje dessa responsabilidade e querem terceirizar isso.
Assim como existe personal trainer, personal stylist, agora tem personal
father, personal mother. Por exemplo, você vai com uma criança ao resort e, ao
invés de ficar com seu filho, entrega para a recreação. Ou vai a um buffet
infantil, que é um sinal nosso de demência, e lá tem um recreador. Desde quando
criança precisa de adulto para fazê-la brincar? Estamos criando gerações que
nem brincar mais por si conseguem. Precisa um adulto vestido de Bozo andando
pra lá e pra cá animando as crianças. Como?! Criança se anima sem adulto. A
família tem que repensar isso também.
Isso não quer dizer que não seja possível equilibrar família e
trabalho...
Lógico que consegue. É uma questão de escolha. Tempo é uma questão de
prioridade. Quando você diz que não tem tempo pra algo é porque aquilo não é
prioridade pra você. Meu dia tem 24 horas eu vou preenchê-lo do modo que eu
quiser. Em relação ao filho é tranquilo. Se você não tem tempo para os filhos,
espere ele cair no mundo das drogas. Ai não é uma hora por dia. Um ano, dois
anos, se der tempo. Portanto, pare, olhe e escute.
Como é que você vê, com a morte do Eduardo Campos, essa mudança
radical nas eleições? Qual é o efeito disso na cabeça do eleitor?
Dependerá muito de como o grupo que sucede essa candidatura vai se organizar.
Eles não são um grupo homogêneo, seja do ponto de vista de intenção, seja do
ponto de vista de organização. Já tiveram mudança do comando de campanha. Me
alegra que foi escolhida para a coordenação da campanha a Luiza Erundina, que é
uma pessoa que eu admiro, fui secretário de educação no governo dela. Mas a
morte de Eduardo Campos coloca um componente emocional na eleição, que é muito
forte no Brasil. Temos três grandes fontes que nos impulsionam durante as
eleições: a credibilidade, o ridículo e a comoção. E há uma comoção em
relação à perda do candidato. Isso pode impulsionar, mas no quadro geral
dependerá de como esse partido, no caso o PSB, com suas alianças, consegue
ganhar maior unidade. Inclusive porque nos próximos 15 dias muda tudo, assim
como nos últimos 15 mudou.
Estamos vindo de um ano que foi marcado por uma Copa em que o
país não pareceu muito animado...
Veja, nós somos um país que viveu uma situação esquizofrênica muito
interessante antropologicamente. Fomos para esta Copa com uma certeza dupla: nosso
time vai muito bem a organização vai muito mal. Aconteceu exatamente o inverso:
nós conseguimos uma estrutura de organização absolutamente funcional, no padrão
do que foi feito em países muito mais estruturados que o nosso, e uma seleção
pior do que boa parte das seleções que disputaram a Copa.
Em 40
dias nosso sentimento mudou. Ele era um sentimento que seria de protesto a um
governo que não conseguiria organizar uma Copa, ao lado de uma animação imensa
com uma seleção rumo ao hexa. Mas depois do 7x1, nós não falamos mais de
futebol. Não é uma questão pra nós. A nossa questão agora é a nação. A eleição,
o que se faz no país. Isso foi um grande ganho. Ter sido humilhado no Mineirão
produziu em nós um efeito que esquecemos o futebol e fingimos que aquilo não
existiu. Estamos preocupados agora com aquilo que era a motivação original dos
movimentos em junho de 2013.
Portanto,
2014 é um ano que traz grandes expectativas em relação ao debate no campo da
política, de gestão nacional, discussão que foi adensada pela morte de Eduardo
Campos.
E essa onda de movimentos?
Infelizmente, eles foram assassinados por uma parte dos democracidas que
esquecem que democracia não é ausência de ordem, democracia é ausência de
opressão. Quando os democracidas entraram com a brutalidade, a estupidez,
afastaram as pessoas e produziram um dano muito forte a nossa democracia.
Eles
criaram em parte das pessoas rejeição ao movimento de rua. Ficou uma imagem
que, depois de um tempo, muita gente estava achando que era melhor que o
aparelho policial, que tem a tarefa em uma democracia de garantir a expressão,
fosse repressor. Em vez de ser uma estrutura policial garantidora - não podemos
esquecer que palavra polícia e política são a mesma em termos de estrutura,
polis é a comunidade e polícia é o que faz com que a comunidade viva em paz –
ela passou a ser demandada por uma boa parte da sociedade para ser um órgão
repressor.
Acho
que gerou pânico em relação à manifestação de rua, o que é muito ruim. O país
viveu em 2013 dois momentos inesquecíveis, algo que historicamente era novo. As
pessoas indo para as ruas com os filhos, caminhando nas avenidas, pedindo
melhorias. Isso tem uma beleza cívica. A praça, a rua, de novo como uma coisa
do povo.
E o segundo momento?
A outra coisa bela foi a visita do Papa Francisco. É inacreditável que um homem
que representa uma das religiões seja capaz de durante uma semana pautar o
país. Não se falou de outra coisa. Um homem de mais de 70 anos de idade,
representante de uma religião, sendo que religião pra uma parte dos jovens
representa aquilo que é anacrônico, colocou em Copacabana mais gente do que os
Rolling Stones. E ele trouxe algo incrível que é um debate sobre
humildade, sobre simplicidade, isso afetou as pessoas. Levou a repensar nossa
convivência com a política, nossa convivência com gestores, nossa atração
palacial, de achar que o palácio é a representação do poder. Portanto essa foi
uma contribuição muito mais forte até do que outro debate que nós tivemos.
O que esperar para o Brasil dos próximos quatro anos?
Bom, a primeira coisa é que a gente não deve esperar, a gente deve fazer. Tem
que ter esperança ativa. Aquela que é do verbo esperançar, não do verbo
esperar. O verbo esperar é aquele que aguarda enquanto o verbo esperançar é
aquele que busca, que procura, que vai atrás. Bem, o que podemos esperançar? O
que a gente puder construir dentro desse tempo agora. Nós precisamos fazer com
que, até o momento da eleição, haja uma discussão sobre a necessidade de se
pensar a educação, que é minha área, como um projeto de nação e não de governo.
É preciso que haja um compromisso, continuidade de um projeto que é nacional. O
governo passa, a nação persiste.
Por
outro lado, dos três principais candidatos que estão dentro do cenário hoje, os
três tem algum compromisso sério com a área de educação. O governo de Fernando
Henrique junto com o governo Lula e Dilma conseguiram tirar nossa educação
escolar da indigência. Claro que estamos só, como diria o Churchill, no fim do
começo e não no começo do fim. Mas o partido do Aécio tem uma formação nesse
campo, o próprio PT tem tradição nessa área e, claro, o próprio PSB. Temos boas
expectativas nesse campo. Ademais, novo Plano Nacional de Educação prevê aporte
maior de recursos do PIB nessa área. Portanto seja quem for eleito vai ter que
fazê-lo. Por isso, minhas expectativas são positivas. É preciso que se construa
essa estrutura, mas é animador face ao que nós tivemos nos nossos 514 anos mais
recentes de história.
Mario Sérgio Cortella –
Fonte: época negócios