No Setembro Amarelo, preciso
falar das vezes que tentei me matar
Parar de beber foi só o começo para reinventar minha vida, recriar
rotinas e descobrir aquilo de que realmente gosto.
Lembrei que não tenho mais arroz
pronto e disponho de pouco tempo para fazer antes de começar as reuniões do
dia. Enquanto corto a cebola bem fininha, vou elaborando uma lista mental das
tarefas.
Saio para pegar o jornal na porta de casa e olho o texto sobre o Setembro Amarelo no canto direito da
primeira página. Me dou conta, com o jornal, a cebola e o gosto de café ainda
na boca, que preciso falar das vezes que tentei me matar.
Sim, foram algumas. Mas mais do
que lembrar com detalhes dos ocorridos, acho importante recordar quantas outras
inúmeras vezes tive vontade de morrer.
Toda vez que ouvia a música do
Gonzaguinha com os versos: "Ninguém quer a morte, só saúde e sorte",
me sentia solitária e errante.
Hoje percebo o quão perigoso é esse sentimento e
quanto eu precisava MUITO estar sempre na companhia de alguém para interromper
esses pensamentos cíclicos.
Minha cabeça sempre foi muito
criativa e julgadora. Sempre fui terrível comigo mesma.
Quando era criança, já
pensava na minha morte, na minha despedida, no medo da sensação de um dia saber
que não teria mais aquele conforto de casa, dos pais.
Era bem estranho e
contraditório. Uma criança aparente e clinicamente saudável alimentava a ideia
da finitude.
Lembro de dizer muitas vezes aos meus pais, às vezes aos berros e
aos prantos, que ficassem comigo, pois eu estava morrendo, não havia dúvida, eu
tinha certeza absoluta. Não foram poucas as vezes que minha mãe desmarcou
compromissos para estar ao meu lado.
Voltar àqueles dias da infância
e experimentar aquelas sensações, ainda sem nenhum preparo intelectual para
viver tais sentimentos, me dá muita aflição.
Não sei se quero pensar naquilo
com medo de que algum tipo de sentimento ruim possa voltar a me assombrar. Mas
me dou conta de que não, hoje é diferente.
Penso na morte, sim, mas penso muito
mais na vida.
Penso nas alegrias que tenho, no trabalho que conquistei e na
capacidade que hoje tenho de cuidar de mim, de fazer o meu arroz branquinho.
Tudo isso é cheiro de vida, então volto àquelas sensações porque é curativo
para mim e quem sabe para outras Alices.
O alcoolismo entrou na minha vida já
trazendo essas sensações. Viver a realidade me parecia insuportável, então
precisava fugir a todo custo. Quando percebi que dando um gole meus pensamentos
se acalmavam e eu conseguia curtir um pouco, foi libertador.
Mas só hoje
percebo que na verdade era justamente o oposto, o caminho do álcool como
remédio, como ansiolítico, é dos mais tristes e aprisionadores.
Sim, o álcool tem um efeito
gostoso que é valorizado na nossa sociedade, mas aqui cabe um alerta às pessoas
que, como eu, são alérgicas (digamos assim) à bebida.
Certa vez um psicólogo me
fez prestar atenção ao local onde eu escondia as bebidas que roubava: era no
banheiro, junto com todos os meus remédios. Claro, era um "comprimido"
para a minha dor, essa coisa estranha que dá no peito e, no meu caso, quase me
matou.
Porque além de ter reações horríveis, eu fui criando resistência, fui me
acostumando a apagar as sensações ruins (e boas) que experimentava.
Somado a isso, o álcool é um
agente depressor. Junto com a solução para minha angústia, ele acrescentava
mais horror depois que o efeito passava.
Então meu sofrimento foi aumentando e,
com ele, a dose de remédio. Imagina a dor? Não sei descrever, mas adoraria ter
esse dom.
Hoje sinto um pouco de aperto no
coração enquanto estou aqui fervendo a água do arroz, mas ao mesmo tempo
consigo entender que tenho ferramentas para lidar com isso.
O que só me reforça
que parar de beber, no meu caso, foi só o começo, reinventar minha vida,
recriar rotinas e descobrir aquilo de que realmente gosto. É isso que de fato
vem me salvando há alguns anos.
Sei que uma situação parecida
pode muitas vezes ser crítica, eu mesma achava que nunca ia sair daquele buraco
de sensações horríveis.
Mas saí, de cada uma. Agradeço às inúmeras pessoas que
me ajudaram quando eu ligava insistentemente pedindo ajuda. Todos precisamos
uns dos outros.
A sensação é individual, mas falar dela no coletivo é
fundamental para me inserir na condição humana de que morro, sim, um dia, mas
VIVO IN-TEN-SA-MENTE antes disso.
Não economizo em gentileza hoje
quando vejo alguém chorando na rua, sempre pergunto se posso ajudar e muitas
vezes, para minha surpresa, de alguma forma eu consigo.
Claro, eu mesma fui
ajudada nas mesmas condições. O que eu queria era sair da minha dor e encontrar
outros sorrisos para equilibrá-la.
E assim vou aprendendo a domar minhas
angústias, seja cozinhando, caminhando, seja abraçando as pessoas que amo. São
dicas para que juntos pensemos como reduzir o número de pessoas que cometem suicídio.
Fui muito amada nas ruas por
estranhos quando estava em desespero, e percebo, ao rememorar alguns episódios,
que cada pessoa foi fundamental.
Fico agradecida e esboço um pequeno sorriso
enquanto desligo a panela do arroz para enfim começar meu dia.
ALICE S. – jornal FSP