Assange, Manning e
Snowden são os novos heróis da era do controle informatizado. Precisamos
protegê-los para garantir a razão pública.
Todo mundo se lembra do
rosto sorridente do presidente Obama, cheio de esperança e fé, quando ele
repetia o slogan da sua primeira campanha: Yes, we can! Sim, podemos nos
livrar do cinismo da era Bush e propiciar justiça e bem-estar para o povo
americano. Mas como os Estados Unidos continuam promovendo operações secretas e
expandindo sua rede de informações, espionando até mesmo os seus aliados,
podemos imaginar um protesto no qual os manifestantes gritem para Obama: “Quer
dizer que você pode usar drones para matar? Que pode espionar os nossos
aliados?” Obama olha para eles e, com um sorriso malévolo, murmura: Yes, we
can.
Essa caracterização, no
entanto, é simplificada e passa ao largo do que é mais importante. A ameaça à
nossa liberdade revelada pelos que denunciaram e espalharam segredos de Estado
tem raízes sistêmicas bem mais profundas. Edward Snowden não precisa ser
defendido apenas porque as suas denúncias irritaram e constrangeram o serviço secreto
americano.
A lição de Snowden tem
alcance global. Ele mostrou que não apenas os Estados Unidos, mas todas as
grandes (e nem tão grandes) potências – da China à Rússia, da Alemanha a Israel
– fazem a mesma coisa, desde que tenham tecnologia para tanto. As revelações de
Snowden deram base factual às suspeitas do quanto somos todos controlados e
monitorados.
Na verdade, nem Snowden
nem o soldado Bradley Manning revelaram nada que já não imaginássemos. Mas uma
coisa é saber disso de maneira geral, e outra é depararmos com dados concretos.
É um pouco como saber que seu parceiro sexual anda transando por aí: até dá
para aceitar a noção abstrata da coisa, mas a dor surge quando se toma
conhecimento dos detalhes picantes, quando aparecem as imagens do que o consorte
anda fazendo.
As revelações de Snowden
e Manning proporcionam uma visão do processo mundial de estreitamento
progressivo do espaço para o que Emmanuel Kant chamava de “uso público da
razão”. Em seu ensaio “Resposta à pergunta: O que é o esclarecimento?”, Kant
opõe o uso público ao uso privado da razão. Para Kant, “privada” é a ordem
comunitário-institucional em que vivemos (o Estado, a nação), enquanto
“pública” é a universalidade transnacional do exercício da razão de cada um:
O uso público de nossa
razão deve a todo momento ser livre, e somente ele pode difundir o
Esclarecimento (Aufklärung)entre os
homens; o uso privado da razão, por sua vez, deve com bastante
frequência ser estreitamente limitado, sem que isso constitua um entrave
particular ao progresso do Esclarecimento. Mas entendo por uso público de nossa
razão o que fazemos enquanto sábios para o conjunto do público que lê. Denomino
de uso privado aquele que se é autorizado a fazer de sua razão em certo posto
civil ou em uma função da qual somos encarregados.[Tradução de Luiz Paulo
Rouanet.]
A distinção kantiana é
pertinente num momento em que a internet e outros novos meios de comunicação se
veem divididos entre seu livre uso “público” e seu crescente controle
“privado”. Em nossa era de computação com nuvens de armazenamento, não
precisamos mais de computadores pessoais de grande potência. Os dados e a
informação são fornecidos conforme a necessidade de cada um, e os usuários, por
meio dos seus programas de navegação, podem usar ferramentas ou aplicativos
estocados na web como se fossem utilitários instalados em seus próprios
computadores.
Esse admirável mundo
novo, no entanto, é só um dos lados da história. Os usuários acessam programas
e arquivos guardados à distância, em salas climatizadas com milhares de
computadores. Para administrar uma nuvem, é preciso haver um sistema de
monitoramento que controla as suas funções, e esse sistema permanece oculto aos
usuários.
Quanto mais o aparelho
que tenho nas mãos – um celular – é personalizado, fácil de usar e de
funcionamento “transparente”, mais o arranjo todo depende de um trabalho que é
feito em outro lugar, num circuito oculto de máquinas. Quanto mais nossa
experiência é compartilhada, espontânea e límpida, mais ela é regulada pela
rede invisível controlada por organismos estatais e grandes empresas privadas.
Quando seguimos o rastro
dos segredos de Estado, chegamos mais cedo ou mais tarde ao ponto fatídico em
que as próprias regras legais prescrevendo o que é secreto se tornam secretas.
Kant formulou o axioma da lei pública: “Todas as ações relacionadas com o
direito de outros homens são injustas se os seus princípios não puderem se
tornar públicos.” Uma lei secreta, desconhecida dos indivíduos a ela sujeitos,
legitima o despotismo arbitrário daqueles que a aplicam.
O que torna tão perigoso
esse controle totalizante das nossas vidas não é o fato de perdermos a nossa
privacidade para o Big Brother orwelliano. Não existe organismo governamental
capaz de exercer um controle dessas proporções – não por lhe faltarem
informações, mas por dispor de informações em excesso.
O volume dos dados é
grande demais. A despeito de todos os avançadíssimos programas de detecção de
mensagens suspeitas, computadores capazes de registrar bilhões de unidades de
informação não têm como interpretá-las e avaliá-las de maneira adequada, o que
resulta em erros grotescos como a inclusão de inocentes na lista de terroristas
em potencial. Sem sabermos por quê, sem termos feito nada ilegal, podemos ser
incluídos numa lista de terroristas sob vigilância.
Há uma lenda sobre o
magnata da imprensa William Randolph Hearst. Ele teria perguntado a um dos seus
principais editores por que ele não tirava férias, a que tinha direito havia
anos, e o editor respondeu: “Se eu sair, fico com medo que se instale o caos e
tudo venha abaixo – mas tenho mais medo ainda que, saindo de férias, tudo
continue na mais perfeita normalidade, provando que não sou necessário!” Coisa
parecida pode ser dita sobre o controle das comunicações pelo Estado. Devemos
temer que os organismos do Estado tomem conhecimento de tudo, mas devemos temer
mais ainda que fracassem.
É por isso que os que
revelam e difundem os abusos desempenham um papel crucial, mantendo acesa a
chama da razão “pública”. Julian Assange, Manning e Snowden são nossos novos
heróis, exemplos de uma nova ética, adequada à era de controle digitalizado que
vivemos. Não se limitam mais a denunciar às autoridades públicas as práticas
ilegais de entidades privadas como os bancos, as empresas de petróleo ou os
fabricantes de cigarros. Agora, eles denunciam as próprias autoridades públicas
quando elas se dedicam ao “uso privado da razão”.
Precisamos de Mannings e
Snowdens na China, na Rússia – em toda parte. Alguns Estados são muito mais
opressivos que os Estados Unidos. Basta imaginar o que teria acontecido a
alguém como Manning num tribunal russo ou chinês. O mais provável é que nem
sequer tivesse ocorrido um julgamento público.
Ainda assim, não cabe
exagerar a brandura dos Estados Unidos. É verdade que a América não trata seus
prisioneiros com a mesma brutalidade da China ou da Rússia. Devido à sua
superioridade tecnológica, ela não precisa recorrer a uma abordagem francamente
brutal – embora se mostre disposta a recorrer a ela sempre que necessário.
Nesse sentido, os Estados Unidos são ainda mais perigosos do que a China porque
as suas medidas de controle não são percebidas como ferozes, enquanto a
truculência da China é patente.
Não basta jogar um
Estado contra outro (como Snowden, que usou a Rússia contra os Estados Unidos).
Precisamos de uma rede internacional que organize a proteção daqueles que
expõem o controle e dissemine as suas mensagens. Eles são nossos heróis porque
provam que, se os ocupantes do poder fazem o que fazem, nós também podemos
revidar e deixá-los em pânico.
Slavoj Zizek – esloveno, filósofo e teóricocrítico esloveno, é
professor da European Graduate School e pesquisador sénior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as quais estão a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de NovaIorque, e a Universidade de Michigan.
Fonte: site controversia