Bloqueio de apps por juízes pode fazer da internet brasileira uma caricatura


Na semana passada, pela quarta vez, uma juíza mandou o WhatsApp ser bloqueado em todo o Brasil –nessa ocasião, uma magistrada de Duque de Caxias (RJ).

Trata-se de péssimo sintoma: bloqueios de sites na infraestrutura da internet estão virando procedimento "normal" no país. O que é inaceitável.

Temos mais de 15 mil juízes de primeira instância. Se cada um puder interferir na infraestrutura da rede e desligar os sites, aplicativos ou serviços que bem entender, será melhor parar de chamar a rede brasileira de internet.

Ela se tornará uma caricatura da rede mundial de computadores, em que alguns juízes decidem no lugar dos cidadãos o que podem acessar ou não.

Bloquear sites, aplicativos e serviços de internet é conduta típica de países autoritários, como a Arábia Saudita ou a Coreia do Norte. Não é algo que seja compatível com o Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu uma resolução, em 27 de junho, condenando o bloqueio de sites por órgãos estatais.

Nas suas palavras: "[O Conselho] condena inequivocadamente medidas que intencionalmente impeçam ou interfiram no acesso ou disseminação da informação on-line e conclama os Estados a abdicar de tais medidas e cessá-las".

Felizmente, esse quadro começou a mudar desta vez. Não só a decisão foi revertida algumas horas depois de ser proferida como quem a reverteu foi o Supremo, por decisão monocrática de Ricardo Lewandowski.

O ministro argumenta que bloquear sites viola o direito de livre expressão e comunicação previsto na Constituição. Viola também o Marco Civil da Internet, que assegura a "garantia da liberdade de expressão e comunicação" na internet e a "preservação da estabilidade, da segurança e da funcionalidade da rede". Com isso, espera-se que a decisão ajude a inibir outros juízes de ordenar novos bloqueios.

Outro fato relevante foi a entrevista em que o ministro da Justiça disse que o governo irá propor projeto de lei para que empresas "detentoras de informações" sejam obrigadas a ter sede no Brasil, permitindo que "forneçam essas informações".

A questão do acesso a dados para investigação judicial é importante e precisa ser equacionada. Esse é um problema global, não só brasileiro. No entanto, obrigar empresas a ter sede no país pode produzir o efeito contrário do esperado.

Mais de 99% das empresas de internet não têm sede no país. Se forem obrigadas a se estabelecer aqui, irão optar por não oferecer serviços no país ou simplesmente ignorar a lei. Tal medida tem o potencial de isolar ainda mais a rede brasileira da internet global.

Vale lembrar que o Marco Civil já possui mecanismos mais do que contundentes para investigação policial. O que deveria estar sendo debatido é se de fato precisamos de ferramentas ainda mais intrusivas, em um mundo em que a vigilância é a regra, e a privacidade, a exceção.

Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em direito por Harvard. Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil. 

Fonte: coluna jornal FSP

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