Adormecer
é uma delícia, mas tem lá suas bizarrices, como alucinações hipnagógicas (ou
seja, que precedem o sono). É o replay das imagens mais marcantes do dia (após
longas horas ao microscópio, eu fecho os olhos à noite e vejo células, muitas
células).
Outra
esquisitice do adormecer, principalmente quando somos crianças, é o abalo
hipnagógico. Esse é o nome daquele sobressalto ou tremelique involuntário do
corpo todo quando já estamos relaxados, à beira do sono, acompanhado por aquela
sensação súbita e descabida de estar caindo no vazio. Esse abalo tem origem em
um surto de atividade espontânea dos neurônios da medula espinal, que se
espalha aos neurônios, também na medula, que controlam diretamente os músculos,
sem qualquer influência do cérebro.
Curiosamente,
o tal tremelique é possivelmente um atavismo, uma herança dos tempos fetais,
quando surtos de atividade espontânea são a norma. Na criança, os surtos
espinais geram sobressalto e até fazem acordar –mas, no bebê ainda na barriga
da mãe, são esses surtos de atividade neuronal que causam um dos prazeres
inesperados da gravidez: os movimentos espontâneos do feto em franco
desenvolvimento.
Descobrir
que os movimentos do bebê em formação e até mesmo do recém-nascido são meros
acidentes resultantes de surtos periódicos de atividade do sistema nervoso em
formação pode ser decepcionante para novos pais, mas não é menos maravilhoso.
Pelo contrário, essa capacidade do sistema nervoso de gerar atividade
espontânea durante seu desenvolvimento é fundamental para sua formação correta.
No
começo do desenvolvimento, os sentidos ainda não funcionam, ou por não terem
amadurecido ou por ainda não se terem conectado aos neurônios. Mas isso não é
problema: na falta de estímulo externo, os neurônios imaturos, hiperexcitáveis,
se entretêm em surtos de atividade, como crianças que começam a falar todas
juntas assim que a primeira começa –mas logo cansam, e voltam ao silêncio.
São
esses surtos cíclicos de atividade espontânea que, ao se espalhar da medula
para o cérebro em formação, vão treinando os circuitos nascentes. Quando o
animal enfim nasce e se expõe ao mundo, os estímulos se sobrepõem à atividade
espontânea. Mas ela nunca vai embora, como a medula às vezes nos lembra, como
um cutucão ao adormecer.
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora
do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com