Minha guerra particular com a gramática


Há algumas regras do português que parecem desrespeitar a psicologia de quem fala

Como a maior parte das pessoas, procuro levar a sério as regras do português. Resisti o quanto pude à reforma ortográfica, e simpatizei bastante com o escritor Reinaldo Moraes, que já na vigência do acordo fez questão de manter o acento agudo no título de seu romance —que ficou sendo, para sempre, “Pornopopéia”.

Mas a teimosia de Reinaldo ficou sendo uma exceção. Todo mundo se empenhou em obedecer. Talvez seja até um signo de coesão social: sem nenhuma ameaça de prisão ou multa, houve uma correria generalizada para saber do que se tratava e passar a escrever “certo”.

Acabei me acostumando com o fim de alguns acentos. Mas não todos. Em algumas palavras, o acento abolido faz falta. Ainda prefiro “idéia”, com acento, em vez de “ideia”. Há uma alegria, um lampejo de descoberta, na grafia antiga. Com a reforma, a palavra ficou mais opaca, mais incerta.

Na reforma anterior, de 1971, tiraram o circunflexo de “medo”. Perdeu-se o espanto particular, a expressão facial, a cautela de “mêdo”.

Não é só na ortografia. A gramática do português está cheia de coisas que, na minha opinião, agridem a psicologia da própria língua.

Nada mais lógico, por exemplo, do que dizer “nós fumos” em vez de “nós fomos”. Esse “u” pede para ser falado, já que no singular se diz “eu fui”. 

Confundem muito, além disso, os verbos que são iguais no passado e no presente. “Nós compramos banana todos os dias” é igual a “anteontem nós compramos banana”. O velho “compremos” seria melhor.  
O subjuntivo é um caos. No verbo “ver”, tenho sempre a sensação de não estar falando português quando digo “se o Joãozinho vir o filme, vai ficar com pesadelos”.

Quanto ao “ir”, é igualmente horrível dizer “acho muito importante que eles vão à aula de inglês”.

Repitam a regra quanto quiserem: tenho sempre a sensação de que “vende-se roupas” é mais certo, no fundo, do que o sempre recomendado “vendem-se roupas”. Não me convence a tese que a frase quer dizer “roupas são vendidas”.

Imagine se eu escrevesse, corretamente, “roupas se vendem”. O significado não é, a meu ver, que alguém colocou as roupas à venda. A ideia é que elas se oferecem no mercado, agindo de moto próprio.

Os cartazes poderiam informar apenas: “Roupas à venda”, ou “Vendo roupas”. Não; mesmo sem ter certeza, todo mundo prefere arriscar.

A gramática do português tem muitos outros casos de insensibilidade psicológica ou estética. 

Penso numa palavra muito ingrata para a poesia: o comuníssimo, e dificilmente substituível, “sob”. Não há salvação para quem queira escrever um verso começando, digamos, com “Sob a sombra das cerejeiras”. 

Em latim, Virgílio não tinha problema em escrever “sub tegmine fagi” (sob a sombra das faias), porque não tinha o artigo definido para atrapalhar. “Sob o Signo de Saturno”, “Sob o Sol de Satã”... ótimos títulos de textos literários, em outras línguas, desabam em português.  

Vi outro dia uma simpática postagem no site Buzzfeed, reproduzida vez ou outra no Facebook, sobre as palavras que ficam muito mais gostosas quando incorretas.

Não chego a concordar com “brusinha”, em vez de “blusinha”. Mas “losângulo”, por “losango”, acho que deveria ser instituído por lei.

Em matéria de leis, gostaria até de sugerir outra, radical. Gosto da crase, orgulho-me de conhecer bem as regras de sua aplicação, mas reconheço que uma grande parte dos brasileiros nunca irá entender sua sutileza.

É como o impedimento em futebol —não adianta explicar, tem gente que não consegue alcançar o sentido da coisa e já para de prestar atenção assim que você começa a explicar. De modo que a total proibição do uso da crase, em ato legislativo, faria muito mais bem do que mal. Como diz o outro, estaria resolvido um grande pobrema. Por que não?

E há os erros que fazem a alegria de quem lê. Num site de leilões, vi o anúncio de uma compoteira a baixo preço; escreveram “comporteira”. É um verdadeiro salto ornamental da incorreção ortográfica.

Termino com um erro que é a glorificação de todos os erros. Anunciava-se um “borrifador” de perfume. Mas escreveram “burrificador”. 

Enquanto isso, lutamos com aquele corretor automático nos textos do WhatsApp, que vale aliás chamar de “zap-zap”. Aprendi recentemente a desativá-lo. Quando você começa a digitar, aparecem diversas sugestões de palavras absurdas. Clique nas reticências que aparecem no final da lista —e a opção de “substituição automática” poderá ser desligada.

Bons erros para você. 

Marcelo Coelho  - membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.

Fonte; coluna jornal FSP

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