A 'lei de Gérson' e a cultura do jeitinho
brasileiro
Somos
um país de criminosos, corruptos e vagabundos que só querem levar vantagem em
tudo?
Na coluna "É a falta de confiança, estúpido!",
perguntei: em quantas pessoas você confia plenamente? A sua listinha tem mais
de cinco pessoas?
Mais de 200 homens e mulheres responderam ao
desafio por e-mail e Instagram:
24% perderam a confiança em muita gente durante
a pandemia; 22% não confiam em ninguém; 12% só confiam nos pais, filhos e
cônjuges; 10% confiam em dois ou três amigos e familiares; 10% só confiam em
Deus; 8% só confiam em seus cachorros e gatos; 4% confiam em todo mundo.
Muitos
não souberam responder.
Como compreender as razões de tanta gente confiar mais nos bichos do que nas
pessoas?
A reflexão de um leitor da Folha, um
médico de 65 anos, é boa para pensar sobre a miséria de confiança brasileira.
Ele ficou deprimido quando leu que o Brasil é o país com o menor índice de
confiança nas outras pessoas (4,69%), perdendo até da Venezuela (5,21%).
"Lembra da propaganda de cigarro em que
o Gérson (jogador de futebol) dizia: ‘Eu
gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve você também’?
No Brasil vigora a
lei de Gérson, o jeitinho brasileiro de enaltecer quem faz tudo errado, sem
ética e moral, sem responsabilidade social e familiar.
É a cultura do rouba,
mas faz. Quem procura fazer tudo corretamente é considerado um verdadeiro
idiota e otário. Uma inversão total de valores."
Ele fez a sua listinha da confiança e constatou que
só confia na mãe, na esposa e na filha.
"Fiz um teste para saber em quem eu posso
confiar de verdade: eu assinaria um cheque em branco para elas?
Ou um documento
sem ler? Seria fiador de um imóvel? Emprestaria grande soma de dinheiro?
Tenho
certeza de que elas cuidarão de mim se eu ficar doente? Confessaria um segredo e
me sentiria seguro de que elas não contariam a ninguém?"
A pandemia foi um divisor de águas, uma
mudança radical de foco sobre em quem ele pode ou não confiar, nos bons e maus
momentos.
"Se antes eu tolerava e fingia que ignorava
pequenas sacanagens, mesquinharias, mentiras e malandragens, hoje não suporto
mais gente esperta, mentirosa e egoísta.
Prefiro ficar só do que conviver com
vagabundos, sanguessugas e parasitas, gente que só olha para o próprio umbigo e
não tem a capacidade de cuidar de ninguém."
Uma das razões para desconfiar e se afastar de
familiares e amigos foi constatar que eles não seguiram as recomendações da ciência e
colocaram (e continuam colocando) em risco as vidas dos seus entes queridos.
"A falta de confiança é o fator mais
determinante para a minha depressão, desesperança e desespero com o país e com
os brasileiros.
Não estou falando só de governos e políticos descaradamente
corruptos, fascistas e criminosos.
Estou falando da família, do trabalho, dos
amigos e dos vizinhos. No Brasil, precisamos estar o tempo todo alertas para
não sermos enganados, roubados e sacaneados.
Em um país em que vigora a lei de
Gérson, como podemos confiar nas outras pessoas?", questionou.
Ele sente muita raiva de pessoas desprezíveis que
são adeptas da "lei de Gérson". "É o típico vagabundo criminoso
que quer sempre levar vantagem em tudo e foda-se o resto da humanidade."
"Meu cunhado nunca usou máscara, não tomou vacina, não
cuidou dos pais idosos.
Já teve Covid duas vezes e contaminou a mulher e os
filhos. Vive me xingando de velho cagão ridículo porque ainda uso máscara em
ambientes fechados e não vou aos churrascos e festinhas que ele organiza.
O
pior é que tem gente na família que prefere não enxergar que ele é um fanático
perigoso. Será que essa espécie de cegueira voluntária tem cura?"
O médico deixou uma pergunta que não sei como
responder. Será que alguém sabe?
"Você viu a pesquisa do Datafolha? 56% dos entrevistados afirmaram que nunca confiam em nada
do que o presidente diz e 17% disseram que sempre confiam.
Com
o boicote das vacinas, com o deboche macabro e o descaso com as mortes de quase 700 mil brasileiros, com as
ameaças golpistas, com o estímulo diário à violência, ao ódio e à destruição do
país, como 17% dos brasileiros ainda podem se identificar e confiar em
psicopatas genocidas?"
MIRIAN GOLDENBERG - antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é
autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"