Sr. ministro, só há desenvolvimento tecnológico com pesquisa básica


Watson e Crick elucidaram o DNA sem saber que um seria possível consertar genes

Ciência nada mais é que a investigação sistemática, organizada, de algo que não se entende sobre o mundo. A diversidade do mundo animal prova que é possível viver a vida perfeitamente ignorante, é verdade. O que sabem jacarés sobre a física da flutuação ou da dinâmica de fluidos, abelhas sobre a bioquímica do néctar, árvores sobre fotossíntese ou a gravidade que elas enfrentam? 

Assim também o animal humano poderia viver sem se perguntar o que faz o sol nascer todos os dias, meses quentes e não tão quentes se alternarem, certos frutos alimentarem e outros matarem, alguns bebês vingarem e tantos outros não.

Ou o que faz uma geração de bebês nascerem subitamente microcefálicos.


Terra vista da Estação Espacial Internacional, em fotografia divulgada pelo astronauta Scott Kelly

Como cientistas não são adivinhos, toda pesquisa é, por definição, básica: ela tenta entender algum aspecto da vida com zero previsão sobre o que se ganhará com isso no futuro. O resultado da pesquisa é conhecimento organizado. Este, sim, pode ser aplicado a problemas específicos, num processo que não se chama "ciência aplicada", e sim tecnologia.

Criar uma vacina que evite a microcefalia causada por um vírus é desenvolvimento tecnológico. Países que investem nisso não dependem de outros para ter vacinas. Mas para chegar aí é preciso entender o que é um vírus; como o cérebro se forma; o que define o seu tamanho e saúde; como o vírus chega de uma pessoa a outra, e de gestante para feto. Tudo isso leva décadas.

Einstein não sabia que a compreensão de que a matéria distorce o espaço-tempo traria um século mais tarde satélites em órbita geoestacionária, GPS, e acesso global à internet. Watson e Crick elucidaram a estrutura do DNA sem saber que um dia seria possível consertar genes.


Só há desenvolvimento tecnológico se houver pesquisa científica, a tal da "básica", que acontece graças a poucas pessoas tão teimosas que não se desencorajam quando juntar dados para responder a uma pergunta às vezes leva décadas —nem quando outros desdenham da sua obstinação. Mas não podem trabalhar para gerar novo conhecimento, para permitir tecnologias futuras, ou no mínimo só manter o conhecimento vivo até dias melhores chegarem, se o governo não financia seu trabalho.

A razão é simples, senhor ministro. Na economia livre, empresas competem por retorno financeiro imediato —o que a ciência de fato não dá. Cabe ao governo ter visão da sua responsabilidade pelo futuro do país para que ele não fique à mercê do conhecimento alheio, financiado pelo governo alheio, à espera que ele seja publicado e chegue na tal da internet.

Com sorte, o Brasil ainda terá pesquisa básica por mais alguns anos.

Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Fonte: coluna jornal FSP

 

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