Somos aquilo que decidimos esquecer.
O artigo abaixo responde à pergunta
feita por Violeta Reys, de 7 anos, para a série “Perguntas de criança,
respostas da ciência”.
Iván Izquierdo, neurocientista
argentino naturalizado brasileiro, costumava dizer que “somos aquilo que
decidimos esquecer”.
Para ele, o esquecimento era o
fenômeno biológico mais fascinante da memória. De fato, precisamos esquecer
para lembrar.
Em um milissegundo consigo lembrar da
data de nascimento da minha mãe, mas não preciso acionar sempre essa memória,
ela fica guardada em lugares específicos do cérebro.
Mas onde?
Para entender as bases
neurobiológicas desse fenômeno, dois conceitos são essenciais.
O primeiro é que o cérebro é
segmentado em regiões que desempenham funções específicas, mas conectadas de
modo a nos permitir desempenhar funções cognitivas superiores, como ler, falar
e raciocinar.
O segundo é relacionado aos tipos de
memória: existe a de curto prazo, que guardamos por algumas horas (o número do
telefone de uma loja de entregas) e a de longo prazo, que é retida de forma
prolongada e pode ser recuperada (o que aconteceu no último Natal), e que podem
ser declarativas (“saber que”) e não declarativas (“saber como”).
Existem ainda outras classificações,
diferentes do ponto de vista biológico, como memória semântica e episódica.
O
início da expansão do conhecimento a respeito da memória merece ser… lembrado.
Em 1953, o paciente Henry Molaison,
conhecido como H.M., foi submetido a uma lobotomia para controlar ataques
epilépticos.
A epilepsia foi contida, mas H.M. não
conseguia formar novas memórias declarativas, embora pudesse formar as de curta
duração e não declarativas.
Assim: H.M. mantinha uma conversação
normalmente, mas assim que o papo terminava e ele começava outra atividade, ele
esquecia por completo que aquela conversa tinha ocorrido –esquecia inclusive da
pessoa, se fosse uma pessoa “nova”.
Era como se ele tivesse sido
submetido ao “neuralizador” da trilogia “Homens de Preto”, equipamento fictício
utilizado para apagar a memória das pessoas.
O estudo desse caso foi um divisor de
águas. E ele ficou a cargo de Brenda Milner, considerada por muitos a fundadora
da neuropsicologia, que o apresentou à comunidade científica ainda em
1957.
(Hoje, aos 102 anos, a dra. Milner
continua na ativa e pode ser vista pelos corredores do Instituto de Neurologia
de Montreal no Canadá.
Eu mesmo tive a honra de conduzir parte de meus estudos
de doutorado nessa instituição, graças ao extinto programa “Ciência sem
Fronteiras”. Uma memória inesquecível).
A chave para o entendimento do caso
H.M. apontou para as áreas que foram removidas na lobotomia, sobretudo o
hipocampo, principal região do cérebro responsável por memórias de curta
duração e declarativas.
Hoje em dia a neuropsicologia sugere
que cada tipo de memória é armazenado em um lugar especial no cérebro.
Ou seja, outras áreas além do
hipocampo também têm a habilidade de armazenar memórias, como o córtex.
Mas o entendimento de um processo
neurobiológico ainda mais fundamental se faz necessário.
Seria intuitivo pensar que surgiria
um neurônio novo a cada nova memória, ou que um neurônio pudesse acomodar um
número limitado de memórias.
Ora, como poucos neurônios nascem em
cérebros adultos, com a quantidade massiva de informações que recebemos, nosso
“HD neuronal” já estaria lotado.
Ambas as hipóteses estão incorretas.
A plasticidade do cérebro é que está em questão.
Os neurônios formam novas
conexões ou até fortalecem conexões prévias com os outros neurônios.
Essa conectividade faz com que os
disparos elétricos –as sinapses– coordenados por uma série de neurônios formem,
retenham, “esqueçam” e permitam a evocação das memórias.
Pode ser que alguns leitores lembrem
desse artigo por muito tempo, pode ser que outros já não lembrem dez segundos
depois de o lerem.
Mas aí a conversa entra em outra
região do cérebro, a amígdala, que coordena um dos fenômenos neurobiológicos
mais bonitos de nossa vida: a emoção.
Ela ajuda a decidir quais memórias a
gente deve guardar. Quer fazer um teste? Quem não lembra do primeiro beijo? Eu
sei, são tantas emoções…
Eduardo Zimmer - bioquímico e professor no Departamento de
Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.