Alcoolismo mata sobretudo porque é difícil aceitar
a verdade: 'estou doente'
O preconceito
contra o alcoólatra, que muitas vezes eu atribuí à sociedade, começava por mim;
demorei para abrir o jogo.
Você lembra do que você fez ontem?
Quem nunca teve
problema com o álcool muito provavelmente não fica arrepiado quando escuta essa
pergunta.
No começo da minha carreira etílica, quando ainda bebia de vez em
quando, mas sempre exageradamente, a frase vinha junto com uma risada e a
pessoa me contava o que eu tinha aprontado no dia anterior.
Os primeiros
vexames soavam engraçados, até animavam a festa. Eu era uma moleca fanfarrona,
"muito divertida", me diziam.
Mas com o passar dos anos, esse esquecimento das
coisas foi ficando recorrente. No dia seguinte à bebedeira, já não me olhavam com bons olhos.
Mesmo porque na
maioria das vezes eu fazia coisas completamente sem noção, ficava totalmente
inadequada. Me transformava em uma mulher com desejos e comportamentos
animalescos.
E quando acordava não tinha a menor ideia do que havia acontecido.
Para mim era humilhante saber pelos outros o que eu mesma tinha feito e, para
os outros, acredito, era muito difícil distinguir as duas Alices.
Principalmente acreditar que eram duas.
Então eu e a minha versão bêbada começamos a nos
fundir. Começou a ficar cada vez mais difícil as pessoas gostarem da Alice
diurna porque a versão noturna prevalecia.
Os estragos foram ficando maiores.
Com muito álcool na cabeça eu era capaz de xingar, trair, machucar as pessoas que
mais amava.
Como escrevi em outra coluna, se em uma bebedeira
feroz me dissessem que a vida da minha mãe dependesse da minha abstinência, eu
certamente beberia.
O resultado a médio e a longo prazo foi que eu não
aguentava mais viver como Alice sóbria carregando todo o peso das ações
inconsequentes da bêbada.
Então fui me afastando de todos, como que me
protegendo para viver essa vida mais em paz. Só que paz era tudo que eu não
tinha. A violência dos meus pensamentos e meus julgamentos contra mim mesma era
um inferno.
Eu não sabia mais o que era viver, muito menos para que mais eu
serviria. Na minha cabeça, seria impossível voltar a me socializar se tudo que
eu tinha eram mágoas e machucados.
Eu não conseguia mais sentir o gosto nem o cheiro
de nada. Não prestava atenção ao meu redor, na natureza, na vida dos outros,
nada me interessava.
Eu simplesmente me coloquei numa ilha de sofrimento e exaustão. E isso é um
perigo muito grande. Mas os meus pensamentos com o álcool me transformaram num
corpo sem vida, sem vontade, sem cor e sem alma.
Eu estava completamente
sufocada pelas dores que eu mesma alimentava. Vivia as perdas e tristezas sob
uma lente ampliada pela minha própria cabeça doente.
E sair desse lugar foi com
certeza a coisa mais difícil que já fiz na vida.
Talvez o tranco mais forte que levei tenha sido da
minha irmã, quando ela falou: "Eu não vou mais cuidar de você. Faz o que
você quiser da sua vida, pode beber até morrer. Agora é você e o espelho."
Depois da sexta internação, eu finalmente procurei
meus semelhantes. A chave, no meu caso, foi perceber que muitas outras pessoas
passaram pelas mesmas dores que eu, pelos mesmos obstáculos.
A humanização da
doença e o olhar de quem sabia exatamente o que eu estava vivendo foi o que me
salvou. Mas a recuperação é muito lenta e é preciso paciência.
No primeiro ano de minha nova vida eu chorei
compulsivamente. Desabafei muito em grupos de ajuda e recebi todo amor das
únicas pessoas que podiam me amar muito: os alcoólatras.
O amor e a empatia em
uma sala de AA é das coisas mais lindas e gratificantes. A cada semana meus
companheiros elogiavam minha melhora sutil, mas consistente. Assim como a
doença é progressiva, a recuperação também.
Com o passar dos anos e muita sala, eu pude enfim
me aceitar como uma doente; não no lugar de vítima, mas aceitando e procurando
ajuda no lugar certo.
O preconceito contra o doente alcoólatra que muitas vezes
eu mesma atribuo à sociedade começava por mim. Demorei muito para abrir o jogo,
para contar às pessoas próximas que eu estava doente.
Mas a partir do momento
que eu assumi, tudo foi ficando mais fácil.
A questão do anonimato nesta coluna, além de fazer parte da
tradição dos Alcoólicos Anônimos, como já expliquei, é porque eu não quero
misturar minha pessoa com a mensagem de libertação do álcool que tento passar.
É muito sério. Desejo que todos que sofrem dessa doença se identifiquem e possam
pensar a respeito. Não quero me intrometer nesse assunto tão importante e
crucial.
O alcoolismo mata principalmente porque o próprio doente demora a
aceitar que é um doente.
Porque, afinal de contas, beber é bom, eu bem sei. Mas
no meu caso é fatal.
ALICE
S. –
coluna jornal FSP