Ainda tem uma pedra
O 'ter' com sentido de 'haver' nos faz estrangeiros em nossa própria língua


Tem um aspecto da gramática do português brasileiro que, sendo apenas um detalhe, diz muito sobre a alma nacional. Falo do verbo "ter" impessoal, com o sentido de haver —como na frase acima.

A gramática que estudamos na escola é fulminante: trata-se de um erro, uma agressão à norma culta. Quem não sabe disso? Tem momentos em que poupa aborrecimento jogar o jogo e escrever: "Há momentos em que..."

Em todos os cantos do Brasil, porém, mal a pessoa sai do registro formal, vai logo conferir se tem comida na geladeira ou perguntar ao filho se tem jogo da Libertadores na TV.

Usar "haver" nesses casos soaria estrangeiro, tão merecedor de um sorriso quanto aqueles cartazes comuns na fachada de restaurantes em Portugal: "Há peixe". 

Na verdade, o ter impessoal é antigo e não de todo ausente em Portugal, embora por lá seja considerado um arcaísmo. O Índice do Vocabulário do Português Medieval registra sua presença firme na língua que se escrevia no século 14. Hoje, é um traço marcante da variedade brasileira e das africanas.

Banido há séculos da escrita modelar na terra de Fernando Pessoa, e contando com o lastro lusocêntrico de nossas gramáticas normativas, o ter à brasileira se viu condenado à oralidade informal. Nesta, porém, reina absoluto, inclusive entre falantes educadíssimos.

Consagrado na língua culta, desde que falada, insistimos em carimbá-lo como erro grosseiro no papel. Algo semelhante ao que ocorre com o pronome oblíquo em início de frase: "Me dá um dinheiro aí!"

Tem usos populares que já foram malvistos e hoje estão assimilados. Por que resiste o tabu do ter impessoal? (Resiste a tal ponto que dificulta o combate a um erro —este sim— comum: a flexão de número em "têm pessoas que escrevem errado". Se os professores não querem ver tal uso nem pintado, como explicar que o certo é escrever "tem pessoas que..."?)

Descompassos entre oralidade e escrita não são necessariamente um problema. Não tem no mundo uma língua em que as duas dimensões coincidam perfeitamente. No entanto, nosso uso do par ter-haver sugere um caso mais grave de desconexão cívica.

Se isso soa exagerado, vamos combinar que temos com a língua uma relação peculiar. Em qualquer sociedade, basta o falante abrir a boca para ser enfiado num escaninho socioeconômico qualquer, o que pode embasar preconceitos. No entanto, o abismo brasileiro entre culto e popular é bem maior que a média.

Nossa formação histórica escravocrata vedou o ensino formal da língua à maior parte da população, ao mesmo tempo que tornava crucial —até, no limite, para a sobrevivência— separar quem fala "certo" de quem fala "errado".

Acabamos nos acostumando a pegadinhas, arbitrariedades, decalques lusófilos variados que distanciam nossa expressão escrita da alma de uma língua que há meio milênio vamos tentando moldar à nossa feição.

O tabu do ter impessoal é um daqueles marcadores linguísticos que, mais que funcionais, são imprescindíveis para a sociabilidade brasileira. Ainda que se trate (ou por isso mesmo) de um traço tão universal e profundo da fala, é um pária gramatical. Não temos direito nem à própria imagem no espelho.

Em 1928, um jovem mineiro imortalizou esse reprimido uso do verbo na pedra de um dos poemas lapidares da língua: "No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho", escreveu Drummond. Quase um século depois, a pedra está no mesmo lugar.

 

Sérgio Rodrigues - escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.

Fonte: coluna jornal FSP

 


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