Identitarismo é o novo darwinismo social
'Sobrevivência
do mais apto' é o cacete.
Comecei a semana aprendendo palavra nova:
"identitarismo". Sim, eu sei: em que mundo minha cabeça vive que eu
ainda não tinha me deparado com o termo?
Vive no mundo do otimismo científico,
ocupada com dinossauros e vasos sanguíneos cerebrais e longevidade e cercada de
amigos que compartilham comigo a visão formulada tão lindamente por Fernando
Pessoa como "toda a gente é interessante se a gente souber ver toda a
gente".
Questionada em entrevista sobre a Cátedra Otavio
Frias Filho, da USP, que assumi neste ano, pela minha opinião acerca da
"discussão do identitarismo", confesso que tive que ir lá consultar
os universitários, digo, o Google.
Descobri logo de cara que usar essa palavra
sozinha é problemático, porque ela pode se referir tanto a uma política
identitária, que singulariza identidades específicas, quanto ao movimento
identitário, que leva a ideia ao extremo supremacista.
Ainda assim, por trás
das duas acepções está a ideia perigosa de que um grupo merece ou precisa de
mais cuidados e atenções que todos os outros.
A pedra fundamental do identitarismo moderno é o
darwinismo social repaginado: a maldita ideia da "sobrevivência do mais
apto" ("survival of the fittest").
A expressão foi cunhada por
um psicólogo, Herbert Spencer, justamente idealista do darwinismo social do começo do século 19,
depois rebatizado de eugenismo –mas o conceito está lá, claríssimo, nos
escritos do Darwin.
O problema é que, juntas, "sobrevivência do mais
apto" são para mim as quatro palavras mais tóxicas que a humanidade já
pronunciou.
Muita coisa ruim já foi e continua a ser "justificada"
com base na ideia casada, captada pela expressão de Spencer, de que (1)
evolução é progresso (2) que acontece através de um processo de sobrevivência
do mais apto e que, por isso, seria "natural", ou até
"desejado", que somente os mais aptos sobrevivessem —ou governassem,
ou dominassem, ou tivessem privilégios ou qualquer coisa desejável.
Mas não é preciso nem sequer entrar no mérito moral ou ético da
questão para rejeitá-la: a ideia casada na sua base é duplamente errada porque
(1) evolução é apenas mudança, não progresso, e (2) a vida é tudo aquilo que
funciona –no sentido físico da palavra, mesmo, de realizar trabalho à custa de
energia ("life is whatever works").
A identificação com um grupo é uma propriedade de
qualquer organismo com um cérebro, e o problema não é esse.
O identitarismo é
nocivo quando parte do princípio de que uma identidade é "a melhor de
todas" —e claro que cada um se acha parte dessa identidade.
No contexto
do darwinismo social, a identificação com um
grupo que também é visto como "o mais apto" vira um instrumento de
dominação.
Se evolução fosse realmente a sobrevivência apenas
dos mais alguma coisa, até faria sentido, diriam alguns. Mas não é verdade.
A
evolução é uma celebração da diversidade, onde nenhuma espécie reina acima das
outras. Falta agora esta espécie em particular se dar conta disso.
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade
Vanderbilt (EUA).