O
assunto é futebol, mas vem do vôlei a analogia que melhor descreve o
comportamento do jornalismo brasileiro em relação à Copa do Mundo.
Desde
2003 sabia-se que o Brasil iria sediar o torneio deste ano. Formalmente, o
anúncio da Fifa ocorreu em 2007.
Mas
quatro anos antes, quando Joseph Blatter, presidente da entidade, tornou
pública sua decisão de que a Copa de 2014 seria na América do Sul, ninguém duvidava
que a escolha seria o Brasil: nenhum outro país da região estava interessado
nela.
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, coerente com seus projetos de
sepultar o que chama de “complexo de vira-latas” nacional, desde sempre
alardeou que a Copa (como mais tarde a Olimpíada de 2016) teria de vir para cá
para promover mundialmente a imagem brasileira como grande nação.
Nesses
11 anos, foram raríssimas as vozes na imprensa que levantaram dúvidas sobre a
conveniência dessa atitude.
E
ainda mais escassas foram as reportagens que mostrassem fatos em conflito com a
tese dominante de que a Copa seria um grande negócio para o Brasil.
A
mídia entrou na onda ufanista de Lula e companhia, talvez animada com as
perspectivas de grande faturamento publicitário trazidas pelo megaevento.
O
jornalismo absteve-se de promover, como era seu dever, um amplo debate público
sobre os objetivos da Copa e sobre quanto a sociedade estava disposta a gastar
para realizá-la.
Ainda
mais grave, a imprensa não acompanhou criticamente o cronograma nem das obras
para a competição propriamente dita nem dos projetos da matriz de
responsabilidade social com que o país se comprometeu em 2007 (a maioria dos
quais nunca será realizada, como se sabe agora).
O
exemplo recente dos Jogos Pan-americanos de 2007 no Rio, que segundo o Tribunal
de Contas da União teve custo financeiro público 793% maior do que o orçamento
inicial previa e deixou a cidade praticamente sem nenhum benefício, não serviu
de motivação para a imprensa fiscalizar o andamento dos preparativos para a
Copa do Mundo.
Lula
assumiu o compromisso, colheu os louros antecipados da “vitória” e os aplausos
ou ao menos o silêncio complacente da imprensa, mas seu governo quase nada fez
para as coisas acontecerem nos prazos e a contento, exceto conseguir que o
estádio então inexistente do seu Corinthians se tornasse o palco do jogo de
abertura do certame.
Só em
janeiro de 2010, no começo do último ano de seu mandato, o presidente Lula
instalou o comitê responsável pela organização do evento.
A
conta, muito maior do que a antecipada, ficou para a administração de Dilma
Rousseff pagar, com o auxílio do Congresso, que concedeu ao Executivo o direito
de usar o Regime Diferenciado de Contratações, menos rigoroso que o sistema
normal de licitações, sob a quase generalizada omissão da imprensa.
Se
não tivessem ocorrido as manifestações de junho do ano passado, talvez a
desatenção jornalística tivesse perdurado até hoje.
Foi
só a partir delas, coincidência ou não, que as cobranças da imprensa ganharam
força e se começou a criticar com seriedade o governo por ter usado mais
dinheiro público do que o prometido, ter permitido atrasos em obras, não ter
realizado os projetos de infraestrutura combinados e, ainda mais, por querer
faturar politicamente para si a realização do evento.
Em
2008, segundo o Instituto Datafolha, 79% dos brasileiros apoiavam a Copa aqui;
em 2014, a porcentagem se reduziu a 52%. Os que eram contrários subiram de 10%
para 38%. Seguramente não por terem visto na mídia nesse período que a ideia,
afinal, talvez não fosse tão boa.
Para
a Copa não virar Big Brother
A
cobertura jornalística da Copa corre, outra vez, o risco de se parecer com o Big
Brother Brasil.
Já em
2010, na África do Sul, os jogadores da seleção brasileira eram seguidos em
todas as aparições públicas e fatos absolutamente banais, como sair do ônibus
para o hotel, registrados como se fossem notícias importantes, acompanhadas de
perguntas do tipo “Kaká, como você está se sentindo?”.
Ninguém
ignora que o futebol virou um grande negócio e os atletas são celebridades como
as estrelas de Hollywood.
Mas
monopolizar o conteúdo do noticiário nas figuras individuais só reitera a
empobrecedora perspectiva de que a existência social gira apenas em torno do
narcisismo desregrado que caracteriza estes tempos de Facebook.
O
sociólogo inglês Richard Sennett fala do “strip-tease público” a que se expõem
os famosos (e agora até os não famosos) de acordo com o paradigma de que “o que
importa não é o que a pessoa fez, mas como ela se sente a respeito”. Pode-se
esperar e deve-se exigir mais do jornalismo.
Que
até a Olimpíada seja diferente
Pega
de surpresa pelas manifestações de junho de 2013, que a fizeram corrigir a rota
da cobertura laudatória ou insossa dos preparativos para a Copa, a imprensa não
terá como se desculpar caso não adote um padrão muito superior em espírito
crítico no acompanhamento da Olimpíada de 2016.
Em
outubro de 2009, quando o Rio foi escolhido pelo COI (Comitê Olímpico
Internacional) como sede do megaevento, em detrimento da Chicago de Obama, ela
aderiu à embriaguez nacional liderada pelo presidente Lula como se a escolha
tivesse promovido o país ao clube das nações do Primeiro Mundo.
Cabe-lhe
o dever de seguir no detalhe se tudo vai estar em ordem para a competição daqui
a dois anos.
Carlos Eduardo Lins da Silva - livre-docente,
doutor e mestre em comunicação; foi diretor-adjunto da Folha de S.Paulo
e do Valor
Fonte: Revista de
Jornalismo ESPM nº 9 (abril, maio e junho de 2014)