Nossa
inteligência não é parte de um grande plano, e sim resultado de bilhões de anos
de evolução
Primeiro,
uma clarificação: “objetivo”, no título acima, não significa viver uma vida com
objetivo, cheia de significado. Esse é um tema para outra semana. Hoje, examino
se a vida na Terra, desde sua origem primordial ao surgimento do Homo sapiens
(nós), tem um objetivo e, se tiver, qual seria.
Turistas andam por ponte no Vietnam
que tem duas mãos de concreto segurando a obra
O
tema gera confusão. Afinal, a vida não é uma entidade com uma agenda. Não
podemos afirmar que a vida, como um todo, tem uma espécie de inteligência
coletiva, um plano de aonde quer ir. Isto seria acreditar no que os filósofos
chamam de teleologia, que existe um plano final e que os meios (a evolução da
vida na Terra) justificam este fim (nós). Muitos cientistas acreditam nisso,
alguns até bem conhecidos, como Simon Conway Morris, da Universidade de
Cambridge. Mas não há qualquer evidência concreta nessa direção.
A
vida, em sua definição mais fundamental, é um conjunto de reações químicas
complexas que podem tanto extrair energia do ambiente à sua volta como se
reproduzir, evoluindo de acordo com o processo de seleção natural.
Simplificando, a vida é uma espécie de química faminta, capaz de se duplicar.
Essa química vai de relativamente simples (organismos unicelulares) à complexa
(lagostas, águias, nós).
Existe,
entretanto, algo muito incrível com relação à vida: o fato de toda a vida na
Terra ter a mesma raiz. Todas as criaturas, de plantas a insetos a pessoas, são
descendentes do mesmo progenitor, conhecido como Lucas (do inglês, Last
universal common ancestor, ou último ancestral comum universal), que viveu em
torno de 3 bilhões de anos atrás. Todos os seres vivos estão interconectados
pela sua história evolucionária.
De
acordo com a biologia moderna, e conforme Darwin intuiu no seu clássico "A Origem das Espécies", a mãe de
todas as criaturas vivas foi uma bactéria. Luca foi nossa Eva microbial.
A
questão que surge para muitos, especialmente após sabermos da existência do
Luca, é se existe um objetivo na vida. Por que a vida foi ficando cada vez mais
complexa até chegar a nós?
O
dogma da biologia tradicional vai contra isso. A vida evolve através de
mutações aleatórias nos genes das criaturas, sem uma direção específica.
Algumas dessas mutações são benéficas, mas a vasta maioria é nociva. De vez em
quando, uma mutação leva a uma vantagem seletiva: o mutante é mais rápido, ou
mais forte, ou mais esperto, e isto lhe permite viver por mais tempo e se
reproduzir mais, deixando uma prole de “mutantinhos” mais poderosos do que seus
primos. No fim, após muito muito tempo, a espécie inteira será diferente de
seus ancestrais de gerações passadas. Obviamente, Luca é a melhor ilustração do
poder das mutações aliadas ao tempo muito longo.
De
acordo com o dogma, portanto, a vida não tem um objetivo final fora a
sobrevivência. O tempo passa, os organismos se modificam através de mutações e,
aqueles com maiores chances de sobrevivência são os mais bem-sucedidos.
Por
outro lado, se a vida tem um objetivo, ela certamente precisa se proteger
contra cataclismos naturais que levariam à sua extinção. Por exemplo, os dinossauros estavam
aqui por 150 milhões de anos e foram aniquilados pela colisão de um asteroide
65 milhões de anos atrás. De lá para cá, as coisas certamente mudaram; nós entramos na história. Talvez não seja ainda
possível prever exatamente quando um terremoto ou uma erupção vulcânica vai
ocorrer, mas estamos chegando lá e já nos protegemos muito bem de mudanças
climáticas. Ao contrário dos dinossauros, podemos até nos proteger de cometas e
asteroides, se tivermos tempo suficiente para nos preparar. (Veja meu
livro "O Fim da Terra e do Céu" para detalhes.) Será que somos nós o objetivo da vida?
Para
complicar a questão, o dogma da biologia vem sendo contestado ao menos em parte
pelo advento da epigenética. A epigenética diz que no longo código
genético de uma criatura, certos genes (pedaços desse código) podem ser
ativados ou desativados por circunstâncias diversas, ligadas ao ambiente e
qualidade de vida da criatura, independentes de mutações. É bom lembrar que os
genes carregam instruções para as células produzirem proteínas, moléculas
complexas que arquitetam os processos bioquímicos necessários à vida. Portanto,
quando certos genes são ativados ou desativados, a produção das proteínas é
afetada e, com isso, é afetado, também, o organismo.
Algumas
dessas mudanças podem até ser passadas para futuras gerações. No entanto, ao
contrário das mutações genéticas, que são permanentes, as modificações
epigenéticas duram por apenas algumas gerações. Mesmo assim, isso significa que
existe um outro mecanismo que afeta os organismos ao nível genético, afetando
como populações vão se adaptando, acelerando o processo evolucionário.
Em
termos humanos, o que você come, o seu estilo de vida em geral, se você se
exercita ou não, suas interações sociais, os estresses emocionais da sua vida
podem, potencialmente, impactar sua expressão genética e ser passado para a sua
prole. Ainda não sabemos muito sobre os mecanismos epigenéticos e, infelizmente,
tem muita pseudociência já se aproveitando disso, do tipo “sua mente pode curar
seu câncer”. Infelizmente, não parece ser possível reprogramar genes com a
mente.
De
volta à questão da vida ter ou não um objetivo, mesmo com a epigenética devemos
concluir que não. Nossa inteligência não é parte de um grande plano, e sim
resultado de bilhões de anos de evolução num ambiente complexo e sempre em
transformação. O objetivo que encontramos na vida vem a posteriori,
resultado da nossa presença neste planeta extremamente raro.
Agora que estamos aqui, e somos uma
espécie capaz de produzir conhecimento, devemos aceitar nosso papel como
expressão rara da vida e repensar nossa relação com as outras criaturas e com o
planeta. Sendo um otimista, espero que o objetivo da vida—sua permanência—se
transforme no nosso objetivo, e nos tornemos nos guardiões da vida e não no seu
carrasco.
Marcelo Gleiser - professor de física e astronomia na Universidade
Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.
Fonte: jornal FSP