A quem convém tanto ódio nas redes?
A felicidade é
banal, episódica e não arregimenta likes.
A manifestação pública do dia 25 trouxe de
volta a carga afetiva e o mal-estar da experiência traumática, encoberta pelas
demandas do dia a dia.
Nessas ocasiões, a adrenalina sobe e a escrita
jorra, embalada pela indignação. Escreve-se com as vísceras, como se diz.
O
texto chega quente e os afetos que ele recolhe do leitor vão do agradecimento,
da catarse ao mais puro ódio.
Ao final, recolhem-se elogios, críticas válidas,
críticas levianas, destempero e obscenidades.
A comoção decorre do tema
sensível e da forma intensa de abordá-lo. Aumentam as chances do texto
viralizar —medida atual de sucesso, independente da qualidade do texto e do
cancelamento do autor.
Afinal, a gloriosa ressurreição dos cancelados tornou-se
banal.
Mas existem os outros dias, aqueles nos quais o
sangue circula pelo corpo todo, não apenas pelo olho.
Neles, vive-se "a
trégua", como tão lindamente escreveu Mario Benedetti ("A Trégua", 1960).
A fresta pela qual a
vida é vivida como bem maior de todos —apenas porque respiramos, sentimos o sol
na pele, rimos ou trepamos— não dá tanto ibope.
É o "tempo da delicadeza", como dizem
Cristóvão Bastos e Chico Buarque, pois não trata das grandes paixões da
existência, que podem ser tão traumáticas como qualquer dor.
São os momentos
preciosos no meio do caos, nos quais a intimidade, a paz e a introspecção
imperam.
Momentos ignorados em nossa cultura do excesso e da velocidade, porque
eles não arregimentam hordas enfurecidas.
Isso é a incitação da internet, que as big techs,
os políticos e os empresários se recusam a tolher.
Buscam, ao contrário, se
certificar de que os afetos estejam a serviço da organização de tropas que se
alinham diante de uma paixão comum e avassaladora, como Vladimir Safatle
explorou em "O Circuito dos Afetos:
corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo" (2016).
Lacan descreve as três paixões humanas como sendo o
amor, o ódio e a ignorância.
O amor, enquanto paixão, coloca algo ou alguém
numa posição ideal, a qual faz-se de tudo para estar à altura, uma vez que nos
sentimos inferiorizados diante do objeto ideal.
O ódio compartilhado faz a
grande cola dos grupos, pois desloca para a figura do desafeto comum toda a
virulência.
Esse jogo permite manter a ilusão de que o grupo é coeso e feliz.
Basta a derrocada do elemento comum —amado ou odiado— para que os irmãozinhos
comecem a se matar pelo espólio afetivo.
Não queremos saber nada sobre os
fundamentos das nossas paixões amorosas nem das odiosas. Daí a paixão pela
ignorância nos manter aprisionados nas duas anteriores.
Amor, ódio e ignorância fazem parte dos fundamentos
de todas as relações humanas, mas podem ser vividos de formas muito distintas,
mais ou menos destrutivas.
A resposta mais recorrente daqueles que discordam
de opiniões progressistas é reveladora da manipulação dos afetos e do
imperativo de nada querer saber sobre si mesmo.
Se for mulher ouvirá, infalivelmente, o
argumento —que vem direto dos bancos da quinta série— de que ela é mal amada
e/ou "mal comida".
Além do flagrante tolo de misoginia —por ser um
comentário reservado unicamente a elas—, está colocado que, por nos faltar
paixão, nossas opiniões seriam amargas e ressentidas.
O paradoxo é que esse
argumento costuma vir como resposta a nossas afirmações mais apaixonadas,
aquelas que por vezes nos escapam à revelia do desejo.
O amor, a intimidade e o sexo, para além da manipulação dos cardumes
midiáticos, se dão nas tréguas. Ali, onde o prazer não se funda em dominar e
convencer o outro é que a vida tem chance.
VERA IACONELLI - diretora do Instituto
Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar
Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.