Quem cobra o quê de quem?
Adotada pelo
jornalismo, nova regência do verbo bate à porta da norma culta.
A nova regência verbal do verbo cobrar é um animal
curioso que já anda livremente por nossas ruas, à espera apenas de documentos
oficiais para tomar assento sem ruído na norma culta brasileira.
Eu disse
"sem ruído" porque circular o bicho já circula, e como.
Um Google rápido revela o apetite com que
nós, jornalistas, temos usado o que na língua escrita é uma relativa novidade,
do tipo que provoca azia em gramáticos tradicionalistas e seus repetidores
acríticos espalhados pelas "páginas de português" da internet.
"Haddad cobra Congresso por compensação na desoneração
da folha." "Ciro Nogueira cobra deputados do PP."
"Bolsonarismo ganha vida própria e cobra deputados por alinhamento ao
PT." "Lula cobra ministros a viajarem
mais." "Fiesp cobra deputados."
A
coisa soa tão natural, tão enraizada na oralidade, que você deve estar se
perguntando o que há de novo em tais construções.
Vamos lá: segundo todos os
guias de regência verbal —e aqui me refiro a todos mesmo, os conservadores e os
atualizados—, uma frase como a primeira do parágrafo acima deveria ser
reescrita como "Haddad cobra do Congresso compensação etc.".
Sim,
cobrar é e sempre foi um verbo transitivo direto e indireto, mas os termos
trocaram de lugar.
Pelo menos por escrito, em situações de menor informalidade
—como é ou deveria ser o caso dos títulos da imprensa, pois não?—, costumávamos
cobrar algo de (ou a) alguém, em vez de cobrar alguém por (ou a) algo.
Intrigado
ao me dar conta do enorme espalhamento do novo cobrar, que não me parece
explicável apenas pelo já proverbial "baixo nível do português do
jornalismo de hoje" e tal, fui consultar a "Gramática do Português
Brasileiro Escrito" (Parábola), de Vieira e Faraco, que tem os mais
arejados, ainda que não exaustivos, guias de regência disponíveis no mercado
nacional.
Encontrei
lá os seguintes exemplos: "O banco cobrou dos aposentados uma taxa
exorbitante. A cantina da escola teve de cobrar aos alunos todas as despesas
que ainda não foram pagas".
E só. Como se vê, nada que se pareça com
"Lula cobra ministros a viajarem mais".
Importante
deixar claro que não estou cobrando dos meus colegas a regência consagrada de
cobrar —e muito menos cobrando meus colegas por a contrariarem. Apenas observo
a língua se mexendo. É fascinante.
Não
duvido que um dia todos escrevamos assim, com a aprovação dos bedéis. Ou não; o
tempo dirá.
O certo é que a regência verbal —"o regime sintático dos
verbos, marcado pela exigência de complemento (com ou sem preposição) ou pela
sua dispensa", nas palavras de Vieira e Faraco —sempre foi terreno
instável, sujeito a deslizamentos e reacomodações.
Bom
exemplo é o do verbo namorar. Os mais conservadores admitem apenas que seja, vá
lá, intransitivo ("Estou namorando"), mas de preferência transitivo
direto ("Estou namorando fulana").
Até
o século 19 era mesmo assim, mas faz tempo que a fala criou uma transitividade
indireta ("Estou namorando com fulana") que os melhores dicionaristas
e gramáticos já sancionam.
O
mais interessante é que novas regências acabam por interferir no sentido —ou
seria o inverso? Namorar com alguém soa como uma ação menos unilateral, mais
compartilhada e ao mesmo tempo mais transitória —quer dizer, mais moderna.
Da
mesma forma, o novo uso de cobrar empresta ao verbo conotações de repreender e
pressionar que não faziam parte do seu elenco original de sentidos.
SÉRGIO RODRIGUES - escritor e
jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.