Meu surto trouxe à cabeça frases e músicas, em uma
espécie de meditação
Nos piores
momentos da minha ausência, quando estava muito difícil, recorri a 'Debaixo
D'água', de Arnaldo Antunes
Por volta de 2016, eu morava num apartamento dos
sonhos. Ficava numa rua calma e o prédio era desses bem pequenos, cujos
vizinhos a gente conhece sem fazer muito esforço.
Além da quantidade de pelos
caninos, da decoração também fazia parte uma exposição de frases de autoajuda.
As paredes estavam todas cobertas com as mais clichês. Eu gosto muito dessas
frases, ainda que algumas tenham virado banais de tanto serem repetidas na
internet.
As frases são todas geniais para levantar o astral.
E, naquele momento, faziam um grande sentido para mim. Tinham ido parar lá das
mais variadas maneiras —compradas em lojas de decoração, em feirinha hippie ou
capturadas na própria internet, nesses sites rápidos e milagrosos em que
achamos de tudo.
Elas funcionavam como post-its diários. Era legal ver aqueles
lembretes espalhados pela cozinha, no quarto, banheiro, sala, um montão.
Um
exageeeeeeeeeero, diziam os amigos mais sinceros. Mas faziam sentido para mim,
principalmente porque pareciam bagunçar tudo. Talvez já fosse um sintoma do meu
estado geral de saúde.
Me lembro aqui de duas: "É proibido pisar nos
sonhos" e "Me ame quando eu menos merecer porque é quando eu mais
preciso".
Ficava hoooooooooras olhando para a última em especial, porque
era a que estava mais no alto, próxima ao teto, bem longe da vista das raras
pessoas que ainda frequentavam a minha casa.
O meu alcoolismo foi afastando todos e a
sujeira e a solidão tomaram conta das frases e da minha vida.
Mas tinha uma que nunca foi exposta, porém ficou
empilhada na minha memória: "Chore um rio inteiro, construa uma ponte,
atravesse".
Hoje acho graça (modo de dizer, né) na frase,
depois do meu surto que durou algumas semanas. Estou
chorando muito e aos poucos tentando construir a ponte.
Mas tenho certeza que
vou conseguir e vou atravessar. Talvez estimulada por vocês, que me escrevem
elogiando a coragem e a força que dizem que tenho.
Atravessar uma ponte com as lágrimas que eu mesma
derrubei, tantas as dores íntimas e profundas... Acho que posso dizer que é o
que venho fazendo desde que entendi um pouco as minhas dificuldades mentais.
E
isso não é de hoje. É uma coisa que começou lá na infância e vem me
acompanhando.
Ao longo do surto, as frases que decorei vieram
junto com músicas que nunca deixei de ter em mente, numa espécie de meditação.
Aos poucos fui entendendo que a melodia, uma das primeiras manifestações com as
quais temos contato no mundo, me ajuda (meus amigos com bebês vivem ninando a
cria).
Nesse meu último surto, eu cantava (bem baixinho) músicas de que gosto.
E me aliviava bastante.
Nesse tempo distante de mim e de vocês, eu sabia
que precisava relaxar. Antes de mais nada, aceito. Eu me entrego?
Confio? Não
sei. Mas aceito. Que sou antes de mais nada uma mulher e não uma menina. Uma alcoólatra e não apenas uma pessoa
com transtorno mental.
Talvez desconfie e não confie tanto. Ouvir música
me faz muito bem. É uma espécie de meditação. Impressionante como aos poucos
vou me dando conta da potência da música.
Já me disseram muitas vezes que a
meditação, aquela tradicional, seria fundamental para mim, mas ainda não
consigo. Pelo menos não da maneira clássica.
Eu medito ouvindo música, por exemplo, e acho que
está valendo. Gosto de ouvir música popular brasileira, e a canção que me
acompanhou nos momentos mais difíceis foi "Debaixo D'água", sobretudo
por causa da voz de Arnaldo Antunes.
Adoro ele, gosto da voz dele. Ficar ouvindo e
pensando mentalmente na letra e na melodia funcionou para mim como uma
meditação. "Mas tinha que respirar tooooooodo dia, todo dia, todo
dia."
Nos piores momentos da minha ausência, quando estava muito difícil,
eu recorria a essa canção pra lembrar que era preciso ver a beleza da vida, por
mais difícil que estivesse a situação, assim como é importante saber que no
fundo do mar tudo é lindo, mas um ser humano precisa de ferramentas para
respirar com calma.
É um exercício. Escuto a música enquanto termino o
texto. Lembrando da casinha linda que eu tinha em 2016 e ao mesmo tempo
respirando o ar que tenho nessa nova paisagem de 2024.
Ah, os amigos, amigos
mesmo, nunca saíram. Permanecem como a continuidade de um rio.
ALICE S. – Vida de
Alcoólatra, jornal FSP