Governança 2.0 para lidar com os desafios da
sustentabilidade nas empresas
De
nada vale ESG se na prática for orientada ao lucro de curto prazo e para
poucos.
Na última semana, foram veiculadas algumas matérias
sobre as mudanças na governança da Natura em relação a
tamanho, composição do conselho e redução e transparência na remuneração dos
executivos.
A notícia chamou a atenção de muita gente. Nas
minhas aulas, a pergunta mais frequente foi: como pode um executivo receber
milhões de reais enquanto a empresa que ele representa perde valor na Bolsa e
o IP&L (Integrated Profit and Loss)
registra cerca de R$ 12 bilhões negativos na conta que relaciona o impacto da
empresa para as consultoras de níveis iniciais?
Para responder a essa pergunta, que não trata de
uma situação exclusiva da Natura, pelo contrário, trata de algo bem comum no
mercado, vou começar explicando a lógica da Teoria de Agência no que se refere
à remuneração de executivos.
A Teoria da Agência propõe que, em função do
crescimento das empresas, da descentralização e da separação entre ownership e
controle, é necessário desenvolver mecanismos para alinhar interesses dos
agentes (executivos) com os dos principais (donos ou acionistas).
O argumento é
que os executivos têm seus interesses próprios e procuram maximizá-los, muitas
vezes tomando decisões que podem ser contrárias aos interesses dos acionistas,
surgindo assim o que chamamos de conflito de agência.
Para garantir que as decisões do agente maximizem o
valor para o principal, duas atitudes podem ser tomadas: o estabelecimento de
incentivos ou remuneração variável para que o agente aja em favor do principal
e/ou a realização do monitoramento das práticas do agente.
Ambas geram custos
ao principal e podem ser efetuadas separadamente ou em conjunto.
A lógica da remuneração variável é que os
executivos se esforçariam mais para melhorar os resultados da empresa, pois
isso também contribuiria para seus ganhos individuais.
Para tanto, é necessário
definir critérios e metas para avaliação de desempenho bem como desenhar o
sistema de remuneração variável atrelado a eles.
Na teoria, não faria sentido
um executivo (agente) receber uma remuneração variável agressiva se os
resultados para o acionista (principal) fossem ruins. Mas nem sempre é o caso.
Uma das explicações para isso se refere ao que foi
concordado em termos de mensuração de desempenho e proposição das metas para a
execução da variável.
Programas mal desenhados focados em resultados
financeiros e de curto prazo podem beneficiar uma ou poucas partes
interessadas.
Além disso, em um país como o Brasil, onde os
encargos trabalhistas são altos, contratos de executivo são baseados em
programas de participação nos resultados e lucros, dado que a porção variável
não é considerada um complemento, o que acarreta menos impostos e, por
consequência, menores custos fixos para o empregador.
Ou seja, a agressividade
na utilização de incentivos não deriva necessariamente da necessidade de
alinhar interesses do agente e do principal.
No Brasil, segundo pesquisa realizada pela Michael Page sobre remuneração de
executivos, um CEO poderia receber entre US$ 180 mil US$ 320 mil em empresas
com faturamento superior a US$ 250 mil .
Em empresas desse tamanho, a parcela
da remuneração atrelada a desempenho representa de 40% a 50% do total.
Somado a isso, na guerra pelos talentos
disponíveis, os objetivos de um sistema de remuneração estratégica são combinar
equilibradamente as diferentes formas de remuneração que auxiliam a empresa a
atrair e reter talentos, o que pode justificar valores tão altos pagos à
liderança. Ou seja, na prática a teoria é bem diferente.
Mas olhando para o que tem acontecido no mercado,
arrisco dizer que essas práticas estão com os dias contados, especialmente
entre as empresas que participam do movimento em prol da sustentabilidade e do
ESG e se comprometem com uma política de salário digno e equidade para os
colaboradores.
A diferença salarial entre a base e o topo das
empresas reforça a desigualdade social da sociedade em que vivemos.
As últimas
décadas se caracterizaram como uma pirâmide de renda invertida dentro das
empresas. Uma pesquisa nos
Estados Unidos mostrou que a diferença de remuneração de um CEO para um
trabalhador típico em 1965 era de 20 para 1, em 1989 era de 59 para 1, em 2020
era de 366 para 1 e em 2021 era de 399 para 1.
No momento em que sustentabilidade e ESG passam a
ser mais bem entendidos pelos diversos stakeholders, o escrutínio público pode
ter efeito significativo na reputação e valor das empresas.
Em resposta, as organizações terão de se preparar
para implementar a Governança 2.0, cujo
foco deixa de ser a maximização de lucro para shareholders e altos ganhos para
executivos e passa a ser a valorização do bem-estar em um sistema de relações
com vários stakeholders.
Propósito e integridade passam a ser o que alinha os
diferentes interesses, para além do compliance.
O papel do conselho passa a ser crucial na
definição do propósito, que deve adotar uma perspectiva intergeracional que se
estenda além de qualquer mandato da equipe de gestão.
Como guardião, o conselho
deve decidir sobre onde e como alocar as responsabilidades ambientais e sociais
na estrutura da organização e sobre como avaliar o desempenho e remunerar os
executivos alinhados ao propósito.
Para tanto, diversidade no conselho é
fundamental. Essa é a governança que vai garantir a coerência e a consistência
das estratégias e práticas em sustentabilidade e ESG.
A esperança dos meus alunos e minha é que as
mudanças recém-comunicadas na governança da Natura surtam efeitos para além das
fronteiras da empresa.
Passou da hora de o mercado entender que não basta ter
(algumas) boas e inovadoras estratégias ambientais e sociais se na prática a
governança for orientada somente para o lucro de curto prazo e para poucos.
As principais publicações sobre a Teoria da Agência
são de Alchian & Demsetz ("Production, information costs, and economic
organization", 1972. The American Economic Review, 62(5), 777-795, 1972) e
de Jensen & Meckling ("Theory of the firm: Managerial behavior, agency
costs and ownership structure", 1976. Journal of Financial Economics,
3(4), 305-360).
Priscila Borin Claro - professora associada e líder do Núcleo de
Sustentabilidade e Negócios do Insper. É mestre em Ciência Ambiental pela
Universidade de Wageningen (WUR) e doutora em Administração e Desenvolvimento
Sustentável pela Universidade Federal de Lavras