Influência da Contabilidade na responsabilidade dos Administradores


Em uma vez que desci ao litoral sul de São Paulo, seguia, como de costume, pela Rodovia dos Imigrantes, estrada nova, de fluxo rápido. A poucos metros do trevo de acesso à Rodovia Anchieta, estrada velha e tortuosa, um sinal luminoso da concessionária responsável informava a lentidão na Imigrantes e recomendava a Anchieta como melhor alternativa.

Depois de alguma hesitação, confesso, virei à direita e tomei o rumo da Anchieta. Esse caminho me gerou certa insegurança. Ele levaria a mim e a minha família à mesma praia que eu pretendia ir quando decidira, inicialmente, seguir pela Imigrantes.

O carro era o mesmo – que, aliás, acabara de deixar a revisão –, mas o caminho era diferente, embora não de todo desconhecido, o que exigiu mais da minha cautela, da minha prudência e da minha perícia como motorista de passeio. Isso me despertou para o fato de que a questão da responsabilidade dos profissionais dedicados à divulgação das demonstrações contábeis das companhias, diante da adoção do padrão IFRS pela legislação contábil brasileira, é bastante semelhante a essa minha viagem.

Com a adoção das normas internacionais de contabilidade (padrão IFRS) ou não, o destino é o mesmo: informar o mercado sobre as demonstrações contábeis das companhias, reconhecendo, mensurando e divulgando a sua movimentação financeira aos diversos usuários (stakeholders). As regras sobre a responsabilidade, isto é, os dispositivos legais sobre o assunto, assim como o carro que eu usava na minha viagem, são exatamente os mesmos, não houve alteração legislativa com relação a este assunto.

Acontece que, agora, o caminho é, em certa medida, mais tortuoso, em razão da subjetividade do julgamento e da primazia da substância sobre a forma. O registro contábil, depois da adoção do padrão IFRS não segue mais a tradição de aplicar fórmulas prontas e acabadas, mas passa a ser adotado o julgamento de cada caso concreto, implicando que a contabilidade deixa de ser uma atividade exclusiva do contabilista, integrando outros setores da empresa, como o industrial, o financeiro, o jurídico, o de serviços etc.

Além disso, reconhece-se, expressamente, a primazia da substância sobre a forma (conferir o prefácio da primeira revisão do Pronunciamento Conceitual Básico – Estrutura Conceitual (R1) do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC: Resolução CFC NBC TG 1 nº 1.292/2010), o que, novamente, aumenta a responsabilidade dos administradores, pois ganha concretude o disposto nos artigos 167 e 170 do Código Civil, que estabelecem, por um lado, que “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”, e, por outro, “se o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de  outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido”.

Em conclusão, havendo, eventualmente, conflito sobre a interpretação de um negócio econômico, juridicamente configurado, a contabilidade poderá servir de prova para a definição da sua natureza jurídica e das responsabilidades de cada empresa contratante (e de seus dirigentes) daí decorrentes. As novas diretrizes contábeis, ao se pautarem, principalmente, no julgamento e na primazia da substância sobre a forma, revelam significativo grau de subjetividade, influenciando a análise da responsabilidade dos profissionais a quem cabe a tomada de decisões sobre os registros contábeis e a respectiva prestação de informações ao mercado. Isso porque, embora não sejam pessoalmente responsáveis pelas obrigações contraídas pela empresa, os dirigentes são responsáveis pelos prejuízos que causar quando proceder, ainda que dentro de suas atribuições ou poderes, com negligência, imprudência ou imperícia (artigo 158, I da Lei das S.A.).

A ação de responsabilidade civil contra os dirigentes pode ser, inclusive, proposta pela própria companhia, se assim os acionistas deliberarem (artigo 159 da  Lei das S.A.), ou por órgãos ou entidades públicos, como, por exemplo, a Secretaria da Receita Federal do Brasil – some-se a isso a informatização sendo utilizada para efetivar decisões judiciais e dos órgãos de fiscalização (exemplos: penhora online, Serviço Público de Escrituração Digital – Sped, Junta Comercial Eletrônica etc.).

Por outro lado, deve ser considerado que as decisões tomadas no âmbito da elaboração das demonstrações financeiras, assim como também no âmbito da sua divulgação (prestação de informações ao mercado), impactam, diretamente, o resultado da companhia e, por consequência, o lucro a ser distribuído aos acionistas. Fica claro, então, que decisões equivocadas, ou tomadas de maneira negligente, imprudente ou com imperícia, podem acarretar a distribuição também equivocada de dividendos aos acionistas, e a responsabilidade pela expectativa de dividendos e a eventual distribuição de dividendos fictícios é dos dirigentes – especialmente daquele que tem a tarefa de prestar contas ao mercado –, solidariamente com o acionista, se este sabia da sua ilegitimidade (artigo 1.009 do Código Civil). Finalmente, há ainda a responsabilidade penal.

Por divulgação  de informação falsa sobre as demonstrações financeiras da companhia, ou de utilização de artifício para melhorar a situação dessas mesmas demonstrações, os dirigentes estão sujeitos à pena de reclusão de um a quatro anos (artigo 177 do Código Penal). Assim, eventual conflito ou dúvida quanto à elaboração ou à divulgação das demonstrações financeiras pode acarretar questionamento também na esfera criminal.

Em conclusão, conquanto a adoção do padrão IFRS pelas empresas brasileiras não tenha alterado os dispositivos legais sobre a responsabilidade dos dirigentes e dos profissionais envolvidos com a prestação de informações ao mercado, a mudança de cultura contábil aumenta a sua exposição perante os casos de responsabilidade civil, tributária e criminal.

Dessa forma, é dever de diligência dos dirigentes, especialmente daqueles a quem cabe a tarefa de prestar informações ao mercado, conduzir com a máxima cautela, prudência e perícia a elaboração e a divulgação das demonstrações financeiras. E essa perícia significa o estudo, a preparação e a atualização dos profissionais intimamente ligados às demonstrações financeiras no que se refere ao IFRS.

Edison Fernandes – advogado, professor de Direito da GV, titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas e membro do Grupo de Estudos sobre Notas Explicativas do CODIM/CPC

Fonte: Valor Econômico

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