Devemos temer por nossas filhas


Afinal, de onde brotam tantos homens maus?

Estaríamos cercados de zumbis, vampiros e lobisomens a serem combatidos por armas de fogo, estacas de madeira e balas de prata? Afinal, de onde brotam tantos homens violentos e incapazes de se controlarem diante das mulheres?

A ministra Damares faz da luta contra o feminicídio sua cruzada pessoal e religiosa. Mas, embora pense enxotar o diabo pela porta da frente, eis que ele volta pelo fundo, pois ali mesmo onde supõe combatê-lo, ignora, convenientemente, suas razões e desígnios. O feminicídio é apenas a ponta do iceberg, cuja base invisível costuma ser reforçada por crenças que supomos servirem para combatê-lo. O paternalismo infantilizante, ao ser travestido de cuidado à mulher, fundamenta o pensamento misógino do qual emergem tantos assassinos, estupradores e abusadores.

A ideia de que a mulher é propriedade do homem está tão viva hoje como há séculos. A suposta proteção da mulher não vem sem o preço da submissão ao desejo do “protetor”. Sabemos das enormes conquistas femininas, mas basta um arranhãozinho no esmalte tosco do politicamente correto e veremos as reais impressões dos sujeitos. 


Mulheres participam de vigília para celebrar o Dia Internacional da Mulher em Dhaka, Bangladesh  

Pesquisa francesa recente mostra que o movimento #metoo é bem menos consistente do que o estardalhaço midiático faz supor. Em artigo publicado no jornal Le Monde (21/06), Chloé Martin cita enquete que revela que os estereótipos que criam o caldo de cultura no qual chafurda a violência contra a mulher continuam indiferentes às recentes manifestações públicas naquele país. Para os franceses o comportamento das vítimas (trajes e atitudes, por exemplo) serve de justificativa para estupros e mortes. 

A escalada do feminicídio em nosso país revela a mesma mentalidade. A ideia que prevalece é a de que a masculinidade diz respeito a insistir diante do “não” feminino —nunca levado a sério— e de que homens não são capazes, por natureza, de controlar os próprios impulsos ou de aceitar a rejeição. De fato, eles não têm sido capazes de considerar o desejo da mulher no mesmo nível que o deles próprios. A masculinidade está equivocadamente confundida com violência, impulsividade, supremacia e descontrole sexual. Cabe à mulher ceder ou fugir a tempo. 

Não são monstros extraterrestres que atacam as mulheres, são homens comuns identificados com um tipo viril machista, mesmo que não o reconheçam.

Leis imprescindíveis como a Maria da Penha não são suficientes para debelar a crescente onda de violência, e mesmo a explosão de projetos na Câmara contra o feminicídio (Folha, 7/7) só se atém à punição. Mais do que punir o crime realizado, trata-se de saber de qual lógica ele se alimenta para que consigamos preveni-lo.

Se quisermos proteger nossas filhas e a nós mesmas teremos que repensar cada gesto no qual uma mulher é tratada com tendo menor valor do que um homem, seja na desigualdade salarial, no serviço doméstico, na maior responsabilidade para com os filhos, nas abordagens sexuais, nos desestímulos aos sonhos profissionais, nos casamentos infantis, na divisão sexista das brincadeiras. Enquanto a ministra Damares prega insanamente a caça às bruxas na literatura infantil, a obediência ao marido, a suposta fragilidade feminina a ser protegida pelo homem, ela fomenta a monstruosidade que finge debelar.

Homens e mulheres precisam se emancipar de modelos equivocados se quiserem proteger suas filhas, pois o homem que mata é alguém próximo, que jurou amar e protegê-las. Um sujeito comum, que se supunha cidadão de bem.

 

Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: coluna jornal FSP

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